Ópera da Morte

Tocou-lhe levemente no braço, e o peso abandonado do namorado reagiu. Olhou-a.
- Mesmo que estivesses a dormir, acordei-te.
- Sim... que se passa? - perguntou, de cabeça enterrada na almofada e um só olho espreitando-a. Pousou-lhe a mão na face e sentiu-a molhada.
- Estiveste a chorar?
Silêncio.
Às vezes parecia que ninguém se ouvia naquela casa de música e vida.
Ele era compositor e o seu mundo era o estúdio. Tempos houve em que partilhava com a namorada cada nota da pauta, cada grave e agudo; a música era a sua dança pelo amor. Até que o dinheiro os obrigou a uma pausa na valsa da sua vida. Comprou um estúdio que tirano sufocou a música num pequeno quarto e deixou o resto da casa muda.
Ela arrastava-se pela sua doença de quatro paredes, o cancro. Os seus dias passavam devagar; para si o marasmo era pior que a doença. Pensar que se habituara àquela vida de mulher de casa acomodada com as garantias do namorado e agora a morte pregara-lhe uma partida. "É bem feito", repetia às vezes enquanto lavava a loiça, "esqueceste a vida, e a morte achou que já estavas preparada".
Ele adormeceu-a com um beijo; foi o seu último sopro de vida.
No dia seguinte, o compositor acordou com a morte. O silêncio dos seus olhos inertes foi a última nota do músico. Terminou com o Dó Maior a ópera que há doze anos balançava sem fim anunciado, e a sua música morreu com ela.

Comentários

Susana disse…
uuuui.... Arrepiante!

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