Pai

Nunca te vi de olhos tão vermelhos como hoje. Tu a imagem dos meus livros de História, o menino descalço da aldeia, o combatente do ultramar, o autodidacta, construtor da sua própria casa e oficina. Nunca te vi com tanto medo que a vida te puxasse o tapete da certeza, essa palavra que também em mim martela como a banda sonora da tua, nossa oficina. Na maca do teu primo viste a morte a passos curtos, e o amargo sabor da doença no horrível cheiro do hospital. O teu negócio é o acidente, é a desgraça marcada na chapa dos carros. Nunca gostaste de cobrar mão-de-obra, sabes a estória por trás de cada acidente, vês a fundo cada cliente que chega a reboque de olheiras fundas e olhar perdido no dia seguinte de compromissos inadiáveis e a vida presa por um azar. E até emprestas o teu carro se for preciso. Quando saímos, encontramos sempre alguém que te cumprimenta com a animosidade de quem bebeu uns copos contigo ontem. Tens amigos do Porto ao Algarve pelo teu bom carácter. Mas impacienta-te que te liguem ao almoço, que te procurem a toda a hora, e com quarenta anos de capital foges quase todos os fins-de-semana para a tua aldeia, o teu verdadeiro mundo. E é na aldeia que sorves o dia até ao último minuto, de lés a lés a percorres a pé e ainda conheces todas as casas, pessoas, campos e vales. Dizes que a vida não vale dietas nem limitações. Comes e bebes às vezes como se não houvesse amanhã. O suficiente para aquela gargalhada que faz balançar o teu banco e ressoar por todo o café. E eu umas mesas ao lado, digo orgulhosa aos meus amigos "lá está o meu pai", o mais feliz, o mais lutador, para mim tão calado. O teu orgulho é para mim silencioso e aos outros contado de voz e cabeça alta. Sabes que sou igual a ti, não gosto de elogios, fazem-me parar. Gosto do medo e do desafio, como tu. Esse medo que não nos deixa dormir. Pela quinta vez esta noite te levantaste para beber água, e eu do meu quarto espreito os teus passos. "Não dormes pai?" "E tu?" Pois.
Deixa que não precisamos da voz para falar. Toda a gente diz que tenho os olhos do pai.

Comentários

delusions disse…
Um texto como um gesto de carinho. Com a beleza de um quotidiano que algumas pessoas ajudam a tornar mais que especial.

Bjinho* boa semana
verawtvr disse…
Muito bonito e sentido!

beijinho*
Marina disse…
Ai.. nao escrevas essas coisas que eu ate fiquei comovida! Era o que faltava pores-me a chorar aqui na redacçao! ;)
*
AR disse…
super-pai e super-filha!
=)
Anónimo disse…
Lindo... comovente... não há ninguém que substitua o nosso pai.

Eu também tenho os olhos do meu pai ;)
Susana disse…
Tal pai tal filha...



se tb escrever como tu, é quase o maior! (sim...quase... maior, maior... é o meu :D)