Prepotência médica

"Mas tens de me ajudar", reforçou do outro lado da mesa uma mulher de meia-idade, de olhos vazios por baixo dos óculos garrafais e embaciados. Os médicos vêem-nos como compostos químicos a ponto de explosão e tudo o que fazem é lançar drogas para tornar o produto apenas um líquido igual aos outros das prateleiras. Que é como quem diz mais um rosto na multidão.
- Sim - respondeu ela, olhando de soslaio para a mãe, que a tinha obrigado a uma consulta de psiquiatria. "Não lhes digas que estou a mentir", avisou-a franzindo o sobrolho.
Aquele sim era o mesmo que a filha lhe lançava quando insistia para que comesse, o mesmo sim que se seguia ao "não voltes tarde". Olhou-a. Nos seus dezoito anos era perfeita aos olhos dos outros, de sorriso largo parecia conseguir tudo o que quisesse. "Beautiful smile hides a troubled soul"... Mas passava os dias em casa errando de pijama estranhamente absorta em nada, de caneta suspensa no caderno ou de comando na mão, esquecida do filme que continuava sem ligar à sua distracção. Noites haviam que passava de olhos muito abertos tentando não chorar, entre bálsamos psicotrópicos que esqueciam a dor. Outras tantas noites passava cismando como que num transe apenas quebrado pelo bom dia chocado do pai, ao contemplar a cama feita e a filha com olhos raiados de sangue. Quando lhe apetecia saía de casa e só voltava na madrugada seguinte. Dançava loucamente e fingia estar tão feliz a ponto de rebentar, mas bebia demais e acabava a noite fechada numa casa-de-banho regorgitando e chorando.
Aos amigos sempre tinha parecido diferente, como se o que a movia ninguém pudesse alcançar. Há uns meses que desaparecia da faculdade depois das aulas que assistia semana sim, semana não; deixara de praticar atletismo e de tocar com a banda, ninguém sabia exactamente o que de repente a levava para longe de tudo e o que a fazia voltar como se nada fosse. A perguntas entre a espada e a parede respondia com evasivas e atirava que o seu mundo só a si lhe pertencia, e que a amizade é também respeitar o silêncio. À sua volta continuavam a girar pessoas e pessoas como satélites daquele grande Sol que os dominava com uma força que nem ela entendia.
Mas se até os pais e os amigos conseguia despistar, o que levava aquela mulher de bata branca pensar que a podia ajudar a reencontrar a serenidade - demagogias ridículas para quem nunca quis mudar -, com meia dúzia de palavras decoradas de grandes calhamaços que nunca conheceram o misterioso fenómeno que ela era?

Comentários

Marta disse…
não gosto dessas pessoas de bata branca...
AR disse…
trágico...mas espero pelo final feliz!!