Cadernos de pó debaixo da cama
O filme acabou. Ela estava cansada de um dia de assinaturas e reuniões que trocistas espreitavam de cada vez que se tentava afastar para um café: antes da porta a deixar fugir o telefone tocava. Mas sorveu cada minuto do filme, aguentou, a curiosidade abria com mais força os olhos que o sono que os fechava. Ele sabia que ela estava cansada, e, teimosa, aguentava o ritual das sextas-feiras à noite do filme que ele escolhia em vez de dormir como cada músculo pedia, por remorso ao sonho do cinema que tinha abandonado, e que ele, obstinado, satisfazia precariamente pela crítica. Vivia na corda bamba da televisão, das notícias de hoje para ontem, dos almoços mal acabados, dos jantares esquecidos. Apenas por ele sentia que estava a viver bem. Ainda comentava as estreias e ia sabendo nomes de actores e realizadores em voga, tanto as caras bonitas da Première, e dos Óscares, como os mais carismáticos e conflituosos que se escondiam das cores fortes da fama.
E quando a tela trocou a emoção pelo negro de letras brancas, agarrou-o e tomou-o como sua almofada, sussurrou que tinha gostado e que amanhã falariam melhor do filme. Ele tentou levá-la para a cama. Ela resistiu, "Sabes que gosto de adormecer no sofá depois de um bom filme. É como sexo." Ele riu-se. Sempre a tinha conhecido assim, bruta em toda a fúria de sentir e falar. Apesar das bofetadas da mãe.
Pouco depois já estava a dormir e ele beijou-lhe os lábios inertes. Tudo para ela era rápido e eficiente, tanto adormecer como escrever, pensar ou publicar. Não havia tempo para cismar. De longos pensamentos tinha feito a juventude. Agora já não tinha vida para isso.
Ele levantou-a, peso-pluma, e levou-a para o quarto, tirou-lhe as calças de ganga e deixou-lhe a larga camisola de algodão, sabendo que no dia seguinte a ouviria refilar por não ter acordado onde tinha adormecido, mas ele não sabia adormecer no sofá, nem sem ela. E assim se aconchegou por baixo dos cobertores, respirando a pele quente dela. Sem saber que há alguns anos atrás, num argumento inacabado ela tinha escrito algo assim. Sobre uma cumplicidade simples e muda. Mas ele nunca conheceria esse lado menos duro dela. Pouco conveniente, fora escondido, nos cadernos de fantasias fechados a pó e cadeado, esquecidos debaixo da cama.
E quando a tela trocou a emoção pelo negro de letras brancas, agarrou-o e tomou-o como sua almofada, sussurrou que tinha gostado e que amanhã falariam melhor do filme. Ele tentou levá-la para a cama. Ela resistiu, "Sabes que gosto de adormecer no sofá depois de um bom filme. É como sexo." Ele riu-se. Sempre a tinha conhecido assim, bruta em toda a fúria de sentir e falar. Apesar das bofetadas da mãe.
Pouco depois já estava a dormir e ele beijou-lhe os lábios inertes. Tudo para ela era rápido e eficiente, tanto adormecer como escrever, pensar ou publicar. Não havia tempo para cismar. De longos pensamentos tinha feito a juventude. Agora já não tinha vida para isso.
Ele levantou-a, peso-pluma, e levou-a para o quarto, tirou-lhe as calças de ganga e deixou-lhe a larga camisola de algodão, sabendo que no dia seguinte a ouviria refilar por não ter acordado onde tinha adormecido, mas ele não sabia adormecer no sofá, nem sem ela. E assim se aconchegou por baixo dos cobertores, respirando a pele quente dela. Sem saber que há alguns anos atrás, num argumento inacabado ela tinha escrito algo assim. Sobre uma cumplicidade simples e muda. Mas ele nunca conheceria esse lado menos duro dela. Pouco conveniente, fora escondido, nos cadernos de fantasias fechados a pó e cadeado, esquecidos debaixo da cama.
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