Avó
Fotografia de Inês Fernandes, Modelo Gonçalo Sanches
A avó mexia distraída a caneca, chá-príncipe do seu quintal. Tinha acabado de fazer o arroz doce, e a canela envolvia a casa num aroma fresco e acolhedor que era só por si o sorriso ameninado daquela avó.
"Eles devem estar quase a chegar", pensava ela com a caneca de chá a escaldar nas mãos, truque dos intensos dias de frio que a neta iria imitar sem pensar. Mexeu na lareira, o lume tinha de ser o maior para a sua chegada, para incendiar os olhos e aquecer os ossos presos, arrepiados da viagem.
Era quase meia-noite, e a pequenina avó que morava à entrada da aldeia espreitava as frestas das janelas, fechadas de frio e pelos travessos bichinhos do campo, que se enfiavam em qualquer buraquinho. As luzes do carro esperado não deviam tardar a iluminar as paredes brancas da sua vivenda. Mas cada vez que os faróis de um automóvel acendiam a sua cozinha pelas fendas da janela e lhe ofuscavam os olhos, era sempre mais uma família que passava, e não a sua. O carro pesava de malas e rostos cansados e empacientes, até ao vislumbre da placa da aldeia, que subitamente os despertava. Acordavam do sonho de tantos meses de sorriso apagado, saudosos e viciados na rotina que lhes carregava o sobrolho.
Ansiosa, olhava a sopa quente no fogão, tanta quanto a fome de uma viagem, e o voraz desejo de um sabor perdido. Arrastava as pantufas e o xaile sempre aos ombros pela casa, e o avô calado na varanda de semblante ausente e olhar tremido pela doença, secretamente ansiava pelas gargalhadas a irromper pela marquise, eu a correr para brincar com o lume e para abraçar, ou esmagar, a avó saltando-lhe para o colo, e a minha vozinha aguda a serpentear nos ouvidos do avô: "quando tocas uma musiquinha para nós?", e ele a enxotar-me com a mão, até que nos supreendia na sala, de acordeão nos braços. Eu dançava pela casa, visitava cada pormenor, sempre igual, depois de tanto tempo longe. Naquelas correrias ia quase fazendo tropeçar o meu pai, carregado de malas e malinhas, poisando a roupa e as prendas que traziamos sempre no estreito quarto cheio de fotografias nossas. Mais que a casa em que viviamos todo o ano, aquele era o nosso quarto. O meu pai tinha o rosto inchado pelas horas de estradas e paisagens que lhe corriam pelos olhos, desejando a cada quilómetro o caldo quentinho com migas de pão que só a sogra fazia como gostava. E a minha mãe molhava o sorriso enorme de lágrimas ao ver a minha avó. Eu achava muito estranho, estar feliz e chorar, mas não me importava. Enquanto a minha mãe chorava eu podia brincar sem ela ver com a tenaz no lume. Debruçava-me tanto na cadeirinha de palha que quase caía, e depois espreitava envergonhada com medo que alguém tivesse visto. A minha mãe chorava sempre ao chegar. Era sempre assim, ela chorava à chegada e eu chorava à partida. Agora, tantos anos depois, ainda choro. Aquela aldeia é especial a cada partida, por cada abraço apertado de amizades maiores que a vida. Mas já não me despeço de uma casa a cheirar a arroz doce, nem de um lume grande que me queima as bochechas e escalda as calças de ganga. Porque o queijo já não nasce das mãos dela, nem o doce de abóbora do pequeno-almoço, ou a morcela do cozido. Hoje é diferente, a casa quando chego está fria, ainda cheira a tinta, não há pão espanhol do dia, nem caldo de cores criadas no prado que eu todo o ano via a crescer. Nada é igual. As sensações fogem mesmo que as tentemos prender como força, como eu abraçava a minha avó. As sensações fogem... mas as emoções ficam. Os cheiros, o toque e a saudade. E o cheiro a canela será sempre o teu doce sorriso, vó.
Comentários
Das coisas mais bonitas de sentir.
Das coisas mais bonitas que eu já li.
prometo q o vou ler faxty =)
este natal espero q nao seja diferente...
ja falta pouco...ate la!
A tua avózinha era uma grande mulher!
Um grande beijo
beijinhos
:)
com cheirinho a canela...
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