Gravada no mármore
Quando era pequenina gostava de me esconder no armário para ver se alguém dava pela minha falta. Gostava de me deitar no chão da cozinha de olhos fechados para a minha mãe pensar que eu estava morta. Gostava de riscar as paredes, e a parte debaixo da mesa da cozinha, o meu mundo de desenhos e letras que só eu sabia ler. E ao canto dos meus bonecos de olhos esbugalhados e as palavras coladas - para não se perderem das amigas, dizia eu, como nas visitas de estudo em que damos a mão uns aos outros -, escrevia um pequeno "FC". Era a única coisa que se entendia no meio daquela salganhada de riscos a lápis de cera. A minha mãe pedia para usar os cadernos (todas as semanas comprava um novo e mais bonito para eu deixar aquela mania), mas eu replicava que eram pequeninos e rasgavam-se, molhavam-se e estragavam-se, e as paredes eram fortes, frias, largas, coloridas, o cenário perfeito para a minha imaginação. A minha mãe sempre teve muito zelo pela casa, e eu trouxe o caos com as minhas canetas e sorriso traquina. Mas ela sempre foi a mãe de toda a gente, a mais velha dos seis irmãos, e soube controlar os meus rabiscos. Explicou-me que não era a única lá em casa e que ela também tinha o direito a brincar com as paredes. A mesa da cozinha era a minha preferida, de mármore mais frio que as paredes e a parte de baixo escondida pela toalha, podia desenhar sem que ninguém me visse nem incomodasse. Deixou-me ficar com a mesa, e lavou as paredes. Paredes para ti, mesa para mim, assim ficou combinado. Um dia perguntou-me porque não escrevia tudo "como deve ser" como "FC", e se o meu nome todo não era mais bonito. Eu respondi que ninguém tinha de perceber, mas que dali a muitos anos iam descobrir um bocadinho de mármore com desenhos e "FC" no meio de muita terra e fósseis, e iam ler muitos livros para me descobrir. Se descobrissem, eu seria um bocadinho lembrada por pessoas inteligentes. Ideias que os desenhos animados e o primeiro ano de escola me davam.
Não importa que nunca encontrem um bocadinho de mármore com um tímido "FC". Debaixo da mesa de cozinha e coberta pela toalha verde de frutos eu desenhei quem queria ser. E não importa que daqui a alguns anos ninguém saiba. Eu deixarei as minhas letras com a certeza do que fui. E as letras soltas serão sempre um bocadinho de mim.
Não importa que nunca encontrem um bocadinho de mármore com um tímido "FC". Debaixo da mesa de cozinha e coberta pela toalha verde de frutos eu desenhei quem queria ser. E não importa que daqui a alguns anos ninguém saiba. Eu deixarei as minhas letras com a certeza do que fui. E as letras soltas serão sempre um bocadinho de mim.
Comentários
Letras soltas que continuam a soltar-se desta vez não numa mesa de mármore, mas num mundo virtual em que fazem sonhar tantas outras pessoas...
Amei o texto, madrinha, é mesmo teu, és mesmo tu!