ele e ela (pura invenção)

Ela estava sentada ao canto da sala, como era já seu hábito, com o olhar distraído percorrendo o horizonte, através de uma minúscula janela que se apertava contra as paredes branco-sujo. Ele chegou com o casaco numa mão e o guarda chuva na outra. Estava seco, o que se comprovava também pelos raios de sol invadindo a pequena janela, para a qual ela olhava sem se ter apercebido, ainda, de uma segunda presença, para além de si própria. Ele acendeu um cigarro, gesto pretensioso junto de um sinal que proíbia o acto. De repente ela olhou, talvez desperta do seu transe pelo cheiro do cigarro, que formava agora pequenas nuvens de fumo, notórias num espaço tão fechado como aquele. Não era um café, nem um restaurante, era um espaço público decerto, irreconhecível, no entanto. Sem setas ou placas que indicassem a que servia aquele local, sisudo e asfixiantemente fechado. Mas voltando a ela, quando cruzaram olhares (como se os olhares se cruzassem), levantou levemente a sobrancelha e nada disse. Não o esperava mas o ar trocista dele mostrava que aquele encontro não era por acaso. Trazia a gravata amarrotada e a barba por fazer. Ela encontrava no seu aspecto uma tristeza que os seus olhos tornavam indecifrável. Ele mostrou a intenção de se sentar e puxou uma cadeira. Nenhum dos dois disse nada. Ele apagou o cigarro sem desviar os olhos dos dela. O silêncio tornava-se cada vez mais pesado, mas nenhum dos dois fez menção de tomar da palavra. Estava frio ali dentro e o ambiente tornava-se irrespirável. Não só pela falta de saídas de ar mas especialmente pela ausência de palavras. De súbito ela disse em voz baixa e um pouco rouca:
- Não vale a pena. Eu já sei de tudo. E não acredito em mais nada que disseres.
Ele não chorou, talvez na sua educação os Homens não chorassem nem se revoltassem. Ficassem apenas naquele silêncio trôpego e instável de coisas interditas por dizer.Finalmente ele tomou da palavra num tom caloroso mas agreste, simpático mas arrogante.
- Não te peço que me ouças.Aconteceu. O verbo está no passado, como podes constatar. Se fosse "acontece" talvez não tivesse coragem de estar aqui frente a frente contigo. Não vês que te amo?
- Não não vejo. Usaste-me, traíste-me. O teu corpo e a tua alma perderam-se do meu. Deitaste estes três anos no lixo. Como sabes, descurei sempre a reciclagem. Não há volta entendes? Não percebo como continuas com esse ar superior.
Ele não disse nada. Prolongou o silêncio até aos limites em que ele transbordou as margens. Levantou-se e saiu. Ela voltou a olhar pela minúscula janela. Ela estava na sala de espera do tribunal. Iam-se divorciar.

Comentários

Fátima disse…
bem! algo completamente diferente do estilo normal, gostei MESMO! o fumo enublou o ambiente, às vezes o que foi não volta a ser (e o que eu gosto dessa expressão, temo-a e tenta-me ao mesmo tempo).
Alexx M. disse…
"Pura invenção"

Gostei.

Uma pura invenção bastante real, nos dias que correm... invenção do quotidiano de tantos casais... invenção da realidade.
Diferente do estilo habitual... igualmente bom*
Fátima disse…
gosto e procuro fomentar agora este género.