Nada

"Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos não se tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas - e esse homem sou eu...
(...)
Como pensar que «eu poderia não existir»?
(...)
Como pensar em nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade; é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo (...), este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror... E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim...
Como tu, meu velho. Aí estás à beira da cova, na urna aberta, para te reconhecermos pela última vez. Onde está a tua pessoa, onde está o que eras tu? Passam pela estrada os carros chiando. Vêm das vinhas, das vindimas, trazem o aroma da terra e da vida. Mas tu agora és apenas a tua imagem. Que é de ti? (...) Viverás ainda na memória dos que te conheceram. Depois esses hão-de morrer. Depois serás exactamente um nada, como se não tivesses nascido. (...) Sim, agora ainda vives para mim porque te sei."

Aparição, Vergílio Ferreira

O angustiante nó na garganta, o friozinho na barriga. O abraço perdido no horizonte, pura quimera que se desfaz numa imagem enevoada e em sensações silenciadas, que sabem simplesmente ao sofá em que me estendo. Aparição de figuras incorpóreas, insubstanciais, páginas e páginas arrancadas do livro dos momentos e conversas que tentei prender em mim, e que voam loucas pela janela, puxadas pelo vento tirano que varre os melhores sorrisos, insistindo que não posso querer guardar tantos livros e tantas páginas de ti no meu quarto. E o medo da não-existência povoa-me de novo, entre os momentos em que giras em mim, em que me invade a revolta. Tantos instantes completos na sua simplicidade, agora visões difusas, confusas. Semicerro os olhos, franzo as sobrancelhas. Procuro-te nos interstícios de mim... mas o vento vai-te afastando do que eu sou. Até ao dia em que o vento me puxará pela janela aberta do meu quarto e da minha memória também.

Comentários

Marta disse…
Inspirado, profundo..fizeste-me voltar a pegar nesse livro que estudámos no 12º ano...pegar nas palavras tão difusas e na altura tão confusas, estranhas absurdas, sobre essa bizarra questão que é existir e depois deixar de exstir. Lembrar e deixar de lembrar. Amar e deixar de amar. Viver e morrer=) LIndo, fantástico, amei!
Sérgio disse…
Faço minhas as palavras da ninfa...
(excepto na parte de pegar no livro)
Fátima disse…
Foi com Vergílio Ferreira que despertei realmente para as questões do sentido da vida e da morte, o auto-conhecimento e a não-existência. Uma obra marcante do modernismo português.
Unattached disse…
Li e já reli esse livro...e agora depois deste post tenho vontade de o ler de novo. Talvez o faça...Também foi Vergilio Ferreira que eu despertei para essa parte do Ser pensante ... nao estas só. \o eheh . ;)

bjs