Anestesia

Partir para um pequeno canto na província é como ser anestesiado com a droga da despreocupação. No vislumbrar de uma simples tabuleta e as luzes de uma povoação, mergulhamos num sono de alienação, dentro de uma realidade paralela de um mundo rural, pacífico no seu isolamento do polvo da tecnologia e da modernidade, que à noite se transforma numa realidade inebriante e louca no embalo de reencontros perfumados com bebida e música. E durante uma semana, ou até um mês, afastamos as nossas superficialidades rotineiras para um recanto de nós e vivemos o que nos é mais familiar, renascendo a cada sensação teluriana. Miguel Torga tinha razão. Sentimos a nossa força renovada no calcarroar das empedradas ruas do nosso pedacinho no interior, no expirar do ar frio e seco que nos envolve até aos ossos, e nos cheiros, tão naturais, como se percorressemos uma extensa quinta de animais entre as casas, a igreja, a escola, as tascas e os cafés ou bares. E, numa embriaguez apática do quotidiano de écrans negros, redescobrimo-nos intelectual e emocionalmente. E em poucos dias pensei num assunto-cliché, um assunto da praxe, mas que me ocupou consideravelmente. As memórias. Um dos mistérios insondáveis do fenómeno humano. As recordações, o pensamento, o sonho, a imaginação. É estranho como, no nosso isolamento reflexivo, podemos sentir um pouco do que desejamos ou revivemos um pouco do que sentimos, mas ao mesmo tempo não sabe a nada, é irreal, é algo que nem é visível. Talvez esteja a cair no niilismo mas, se tudo acaba, se tudo desaparece e o que nos resta são as memórias, imagens, reflexos de nós e dos outros em papéis frios ou bocadinhos que vamos perdendo no buraco negro da mente, para que serve tudo? Afinal de que nos serve partilhar tanto com alguém se um dia se torna apenas uma projecção fotográfica e perde aquele cheiro a filhozes e a lume? E um dia também seremos vídeos mentais e insensíveis aos sentidos dos outros? Mas não seremos um nada absoluto. Saberemos a pouco mas mesmo assim transbordaremos dos olhos dos outros, e renasceremos em dias de insónia.

Comentários

Anónimo disse…
Post duma profundidade inestimável (como a sua autora)...parabéns:)**
Marta disse…
tou arrepiada...
Marta disse…
lindoooooooooo
Anónimo disse…
E que droga!!! Como estou viciado. Serei eu um caso perdido?!!! Nem sempre a vida nos permite alcançar o que desejamos. Os entraves aos desejos surgem criando impedimentos que bloqueiam o acesso à realização dos esboços planeados. Como tal nem sempre é possível respirar esse ar anestésico que recompõe forças e ânimo. Sou um viciado, não procuro a cura, e para equilíbrio da minha existência este ar é sagrado.
Interessante é verificar como em tão pouco tempo a existência de uma realidade se tem alterado profundamente verificável tão facilmente na comparação de imagens com algum tempo e os dias de hoje. Onde antes eram ruas empoeiradas ou lamacentas hoje domina o empedrado. A preciosa água que obrigava à deslocação rotineira ao chafariz hoje já nasce quase de forma inesgotável nas torneiras. Nas estradas cruzavam-se carroças burros e parelhas enquanto agora quase só tractores e automóveis. O esforço, que nos obrigava a higiene pessoal, está hoje resumido a uma quotidiana ida à casa de banho tão vulgar como outra qualquer. As vias de comunicação são incomparáveis. A pedra tem desaparecido em substituição do cimento. E muito mais……
Mas esse ar e isolamento continuam na sua essência iguais e são um bálsamo para o meu ser. E na falta deles são as recordações que suavizam a inquietação.
Fátima disse…
O poder inebriante do nosso bocadinho de paraíso... =) OJ, não te conheço, ou pelo menos não o creio, mas descreveste a cada palavra o que se sente no respirar do ar anestésico da província. por vezes é angustiante viver longe dela sabendo que existe e é em muito superior à superficialidade citadina, mas viver sem saber que podemos refugiar-nos lá a qualquer altura seria ainda mais angustiante.

como diz um primo meu...se houver uma inundação em Lisboa, podemos sempre fugir para Aldeia Velha! =)
Anónimo disse…
Tas inspirada....lembraste naquela noite em Aldeia Velha, naquela curva onde me virei para ti e te disse:" ja viste parece o fim do mundo" e estava a apontar para aquela escuridao que nos rodeiava...bem é isso que que penso de Aldeia Velha um luz no meio daquela escuridao, a volta a escuridao, ou seja a nossa rotina, lisbo, problemas, etc...chegamos a Aldeia Velha e somos iluminados por aquela magia que so ela sabe ter...

olha la qual é o teu primo que diz isso...?!?lolol
Anónimo disse…
Ísis também creio que não nos conhecemos mas sou teu vizinho, dos Forcalhos. Mas concordo que este cantinho é mágico e tem as características de uma pedra preciosa em bruto e a descrição que fizeste é lapidar. E quanto mais longe dele mais valor lhe damos.

O teu primo é um iluminado pois a segurança deste canto do Céu já foi comprovada em 1755 como poderás verificar em http://noticiasdosforcalhos.blogspot.com/2005/11/60-dia-de-todos-os-santos-em-1755.html
Fátima disse…
Percebi, OJ. =) o nosso pequeno pedaço é realmente especial, em toda a sua candura e calma. tenho de ir ver melhor esse post. =)

erasmus, é o Simão! =) disse-o dia 31...não ouviste? ;) e é verdade gilou... esta última semana fez-me mesmo bem!