Transparente
Não gosto de portas, nem de chaves. Sempre me esqueci para que lado fechava e abria, direita abrir esquerda fechar, será?, sempre tentava abrir de qualquer maneira e à sorte entrava em casa. Até dar indicações para a minha rua me irritava, afinal não ia dar tudo a todo o lado? Siga até ali e depois é fácil, é uma casa amarela. Uma casa amarela. O meu Sol por entre as ruas sete ou oito vezes os meus braços abertos, como media eu. De pequenina me tremia a cidade nos olhos e se revolteava no estômago em náuseas antes de ir prá escola. "Senhor doutor, não é normal, a menina fica sempre nervosa antes de ir prá escola." "Coitadinha não terá ansiedade com cinco anos. Vamos fazer exames". Fizemos. Eu e as máquinas, os médicos nunca fazem nada. Tinho a válvula não-sei-quê apertada, "ela não regorgita de nervos, é o estômago, coitadinha". Coitadinha, coitadinha, tinha de ser palavra de médico. Não me cabe o mundo assim de repente, tenho de o mastigar devagarinho. Que raiva de me sentir frágil, os olhos da minha mãe por todo o lado, todo o medo dela pelo que eu não tinha, exagerava-me à mesma. Eu queria viver o mundo. Logo percebi que era mais colorido que os livros da escola. Da escola. Os outros não. Os outros devorava louca e voraz como chocolate. Chocolate. Sou alérgica ao chocolate. Sabe-me tão bem mesmo sendo turbilhão no estômago, às vezes cólicas ao outro dia. Mas era tão bom ficar em casa, não pentear o cabelo e andar de pijama todo o dia a chá, bolachas e desenhos-animados.
Uma vez a professora de português pediu-nos para contar um sonho estranho. (Toda a gente tem estórias com as professoras de português, não é?) Eu tive um sonho azul. Saía à rua e o mundo era azul, como se vê do espaço, como se estivesse debaixo de água, como imaginava Atlântida. A professora sabia que eu não estava a inventar. Podia, era capaz, mas não estava. Sonhei azul como no livro de símbolos, azul é sonho. Como uma falha nas cores do meu cérebro. Escrevi o sonho o melhor que me lembrava e sempre mais um bocadinho. A professora sorriu e disse que eu podia fazer melhor.
Na inocência a verdade e o azul, dizia eu que não queria ser adulta, parece muito cansativo. Incertezas da infância certezas hoje, a corda bamba dos sonhos lançou-me num trapézio sem rede. E agora? Vou engolir o mundo, mesmo que o estômago continue apertado.
Uma vez a professora de português pediu-nos para contar um sonho estranho. (Toda a gente tem estórias com as professoras de português, não é?) Eu tive um sonho azul. Saía à rua e o mundo era azul, como se vê do espaço, como se estivesse debaixo de água, como imaginava Atlântida. A professora sabia que eu não estava a inventar. Podia, era capaz, mas não estava. Sonhei azul como no livro de símbolos, azul é sonho. Como uma falha nas cores do meu cérebro. Escrevi o sonho o melhor que me lembrava e sempre mais um bocadinho. A professora sorriu e disse que eu podia fazer melhor.
Na inocência a verdade e o azul, dizia eu que não queria ser adulta, parece muito cansativo. Incertezas da infância certezas hoje, a corda bamba dos sonhos lançou-me num trapézio sem rede. E agora? Vou engolir o mundo, mesmo que o estômago continue apertado.
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