Não estás
Arrepio. Uma corrente de ar frio invade-lhe a fantasia, uma voz estridente e nervosa interrompe-lhe o voo. "Não", murmura inconsciente, e agarra a almofada com violência. Imagens confusas a quem tiraram de repente o tapete do sonho correm e atropelam-se enquanto os olhos não abrem, preguiçosos como o corpo inerte, pesado... uma cãimbria na perna. "Nada há lá fora que não haja melhor aqui", e inventa bocadinhos de sonhar para se perder no sono outra vez. No embalo do seu respirar decide que não vai acordar. O zum-zum urbano malicioso que se escapa entre a janela e as cortinas cheira a sorrisos contrafeitos e arranques de motores mal-dispostos. Nem o cheiro a torradas quentinhas ou o café a fumegar à mesinha-de-cabeceira lhe faz querer ser. Espreita entre os lençóis o telemóvel. Nem um sinal de saudades. E de repente a confusão. Que aconteceu? Nem uma mensagem pequenina de acordar, um murmúrio de amor ou o soprar de um beijo. Nada, nada, nada... O quarto emudece. (Sempre a respeitou muito.) As cortinas, ciosas, param de serpentear. Calam-se os passos no corredor, a televisão da cozinha, a torneira da casa-de-banho. "Não há nada, não me apetece". Tinha tanta vontade dele. E ele não estava. Esticou os braços ao longo do colchão. Tanto espaço. Passou as mãos pelos lençóis. Tentou cheirá-los. Mas já não falavam dele. Tinham-no esquecido mais depressa que ela. A cama era demasiado grande para um corpo tão pequenino. Mas era melhor que forçar a teimosa paralisia de trabalhar e a má-vontade de rotina, beber uma caneca imensa de nostalgia na mesa de mármore, gelada na sua enorme casa de tantos irmãos e pais distraídos na emoção de amar.
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bjoooo*