Runnaway train, never coming back...
- Agora não vais chorar, ouviste? Não podes... fazes-me chorar também e não podemos ficar assim. - a sua voz meiga engrossou, os olhos sorridentes incendiaram-se; parecia um tenente-general a dar uma ordem a um soldado frágil e desajeitado.
Sentindo as mãos quentes transformar-se num toque glacial, ela tentou aligeirar a conversa, tentando ser engraçada. Como sempre.
- Sabendo que vou naquele comboio horrível é quase impossível. Nem é por ti... aquilo é um suplício! Nem música há; os picas são todos bexigosos e rebarbados...
- Não desvies a conversa, por favor. - voltou com o seu olhar de gelo.
(Silêncio. Ela não insistiu mais. Aquele dia tinha sido apenas uma ilusão, por mais que Rui Veloso ecoasse na sua cabeça, entre as planícies verdejantes do Norte.)
- Ok... então quando vais lá? - insistiu, colada ao seu peito, afagando-lhe o pescoço e brincando com aquele olhar de menina abandonada.
- Não sei... - disse, com o olhar perdido pela estação.
- Não sabes? Quando acabarem as praxes, não? - largou-o de repente, como se as suas palavras fossem um vento que a fossem afastando de mansinho... Olhou-o por cima do ombro, e foi-se dirigindo para a porta do comboio.
Ele aproximou-se, agarrando-lhe a mão e abraçando-a de novo, por cima dos seus braços inertes, colados ao corpo, teimosos.
- Não sei. Depois é o baptismo, o cortejo, as festas... Não posso sair assim. - e tentou a voz quente de novo, num esforço vão de a apaziguar, acariciando-lhe as mãos encostadas às pernas.
- Ah. Tens muito que fazer, já percebi. - olhou-o de lado de novo e repeliu com os ombros os seus braços.
- Fogo... não gosto nada desta altura. Estás a ver aqueles dois ali? Lá vai a namorada para longe e fica o rapaz sozinho. Eu vejo-nos ali, mas eles não são tão nervosos. - desabafou, baixando os olhos e assistindo à despedida melosa do casal ao lado.
- Se calhar ele não tem mil festas a que tem de ir. Seu Lili Caneças. - e riu-se do ridículo daquela situação, daqueles meses condensados num segundo, que o traduziam melhor que outro dia qualquer. Tudo tinha sido um chegar e partir estonteante, um filme cheio de peripécias, encontros e desencontros, daqueles filmes que se passam apenas num dia. E já antevia as palavras "the end" na tela. E se não era daqueles que acabam "e eles ficaram felizes para sempre", valia mais aproveitar o momento que deixá-lo entre discussões e lamentos.
- Beija-me. - desafiou-o, olhando-o de cima, arqueando as sobrancelhas. Ele não estranhou o pedido. Conhecia as suas constantes mudanças de humor. Gargalhadas, amuos, sorriso, careta.
- Tenho uma ideia! Vamos os dois comer chiclas de mentol daquelas que te deixam com falta de ar. Vai ser uma explosãããão de frescura!
- Vamos então! - e sorriu, complacente, enquanto ele tirava o pacote de pastilhas do bolso. Ele também sabia, e estava a fazer tudo para que não acabasse como um filme romântico piroso. E ainda bem, porque só ela sabia como tinha suspirado ao saber que ele os adorava.
E envolveram-se num longo beijo de mentol, fresco e doce, entre risos. Anestesiados, e as bocas ainda querendo mais, separaram-se e olharam-se profundamente nos olhos. Na cabeça dela algo ecoou: "este beijo soube pela vida", como tinha ouvido uma vez. E ele foi o estalido que os fez acordar daquela nuvem cor-de-rosa, como nas ilusões mágicas: "Bem, e com isto faziamos uma publicidade para chiclas espectacular!!"
Abraçou-o sorrindo, apontando em seguida para uma máquina onde se podiam comprar pastilhas e chocolates. "Se quiseres mais..."
O comboio apitou. "O comboio inter-cidades vai dar entrada na...
- ... linha número seis. Senhores passageiros aproximem-se da plataforma. - completou ele. - Já conheço esta cantilena de cor. Essa mulher é uma malvada... Vá, deixa-me entrar para ver onde é o teu lugar. Quero ter a certeza que não há lobos maus para assustar o capuchinho vermelho.
- E se te fosses esconder na casa-de-banho? Ou lançar o pica borda fora? Que velhinhos horríveis aqueles... - replicou ela, tremendo por dentro, pensando já que não mais voltaria a viver aqueles simples momentos de plenitude. Dois em um, outra vez um sem dois.
"O comboio inter-cidades, na linha seis...", repetiu aquela voz estridente, irritante, o som de um filme a acabar, entre o polifónico do aviso da voz.
- Já te viram! Estão-te a mandar embora. Vou-te mandando mensagens para aguentar o martírio da viagem.
- Eu vou para as aulas... mas vou respondendo quando puder, ok?
Aquela resposta, aquela sensação voltava. Ignorou. Beijou-o novamente.
- Não me deixes ir...
- Telefona à tua mãe e fica uns dias! Que mal tinha?
- Tu e as tuas parolices de novelas. Sim, sim, era como dizer que ia chegar atrasada para jantar. Vá...vou entrar.
- E eu vou-me...não te quero ver partir.
Abraçaram-se intensamente, quase se esmagando um contra o outro. Ela puxou-o para dentro do comboio, e sussurrou-lhe ao ouvido: "vem tu comigo..." Ele abanou a cabeça, baixando os olhos. Afastou-se do comboio, acenou, virou costas, e desceu as escadas da estação enquanto o comboio ia silvando e afastando-se, egoísta (se ao menos de repente parasse e tivesse um problema qualquer que o fizesse voltar para atrás). E ele não olhou mais para a janela em que ela tinha a mão cerrada e os olhos muito abertos, como fazia sempre para não chorar. E então ela soube que não o veria mais.
Comentários
"um sem dois"....para sempre.
=(
it hurts. magoaste-me.
;)*
Nem sei que comentário escrever a um texto tão lindo como o teu :) Deixou-me triste por um lado, porque me lembrou as minhas (falhadas) relações à distância, mas gostei muito de o ler... Um txt lindo*
E bem haja a vocês.=)