Nós
Remexo o chá depois de fecharem a porta. Foi uma tarde especial, estivemos todos cá em casa em volta da mesa outra vez, entre bebidas que aquecem a alma e bolinhos que a adoçam. Ninguém notou quando fiquei calada por momentos, saboreando o arroz doce, sorrindo para mim e misturando aos bocadinhos fotografias de momentos que hoje são os armários cheios do corredor, os albúns dessarrumados de folhas fracas por sentimentos tão fortes! Nós entre os peluches, carinhas rechonchudas e miudinhas, confundidos entre as bonecas. Nós na serra da Estrela, "mãe a neve é tão fria, dá-me um boneco para brincar em cima dela, faz mal às mãos!". Nós em casa da avó, as mãos sujas dos troncos que metíamos na lareira, "não é preciso tanto", dizia ela, mas todos queríamos ver o fogo a encher os olhos, a queimar as faces e a crescer até ser maior que nós, todos queríamos ajudar a carregar os tocos tão pesados ou as giestas que arrumávamos com cuidadinho entre os buraquinhos sem lenha. E daquela vez que viemos todos para minha casa em Lisboa, ainda éramos cinco, lembram-se? Os primos mais velhos, nem imaginávamos que ainda viriam tantos mais, e que tivessemos a sorte de nos termos sentado à mesa das melhores consoadas e aniversários que a nossa família alguma vez terá. Corríamos entre os cabides e os mostradores, escondiamo-nos entre as calças e as camisas, assustávamos as nossas mães e quem passava saltando de repente como lobos! Para dois deles era novidade aquele mundo de cor e brilho, sempre tinham vivido no campo entre a ponte verde e fresca e o mini-mercado sem cabides nem pessoas sem nome. Outros dois falavam entre si uma língua esquisita que nós os três não entendíamos, e devagarinho tentavam palavras que ficavam para o fim do dia na altura da escola, o falar diferente que os envolviam mal passassem a fronteira no Verão. O que choraram vocês quando sem querer corri para umas escadas que me empurraram para baixo, o que gritaram o meu nome e o das nossas mães, eu não conseguia subir e vocês lá em cima, a chorar e eu com medo de tantas cabeças estranhas que se acumulavam lá em baixo. "Mãe, ela entrou naquela coisa e..." "...elle n'arrive pas a monter, elle n'arrive pas a monter!" As nossas três mães soltaram a gargalhada mais maldosa de que alguma vez temos memória, como se podiam rir se eu estava cada vez mais longe e por mais degraus que subisse continuava a ir para baixo? Fizeram-vos entrar naquele monstro que nos empurrava para longe e vocês tinham medo, não queriam chorar como eu, aquelas escadas que mandavam nas pessoas, não, não! Palavras ao ouvido e eu que já invento mais um bocadinho do que aconteceu todos desceram para perto de mim, a berrar junto às escadas daquele antigo e grande armazém de roupa (ainda se lembram da "Printemps"?). Abraçaram-me todos e a mais velha disse que estava tudo bem, e alguém mostrou a língua às escadas rolantes. E largámos a correr para a sala de jogos, os rapazes queriam andar nas motas e nos carros, as raparigas queriam ir para a casa cheia de bolinhas de plástico em que mergulhavamos como o tio Patinhas no dinheiro. Mas depois espreitavamos os jogos dos rapazes também, acabávamos por jogar e riamo-nos como se não se pudesse, "jogos de meninos são só para os meninos, depois ainda nos chamam marias-rapazes!". E ficava só entre nós, um segredo-reguila como nós, prometido com olhos grandes e expressão grave. No dia seguinte lá iamos todos para a praia, "que coisas horríveis aquelas verdes, devem ser bichos!", dizia eu, e um dos rapazes enchia-se de algas e dizia que era uma sereia. Ríamo-nos das pernas-lixívia de um dos nossos tios, com os braços muito queimados de todo o ano de trabalho no campo. E do meu pai que nunca soube mergulhar, mandava-se para a água e depois saía com a barriga muito vermelha, a chapa que tinha feito tinha molhado a minha tia que não queria estragar o cabelo. No final do dia todos comíamos um gelado e íamos só de fato-de-banho e toalha a dormir nos carros, cansados dos castelos e de fugir da água, "que onda tão graaaaande, vai-nos engolir"! Passávamos as noites a ver filmes de desenhos-animados, em concursos no velhinho e cinzento tetris, a jogar ao quarto-escuro, aos pulos na cama... Uma vez um de nós partiu uma cama e todos jurámos não contar nada a ninguém... Até que a minha mãe se sentou nela, ia caíndo e todos baixámos a cabeça de vergonha. Passando Julho e os primeiros dias de Agosto, chegava a altura de irmos todos para a terra, e como uma excursão enchíamos os carros de brinquedos e íamos jogar ao boi para o curral da avó todas as tardes, fazíamos touradas com a cabrita (e uma vez ela ia-me acertando no estômago, que matreira que era aquela Beca!), passávamos tardes montados na burra à vez, lutávamos porque todos queríamos conduzir a carroça de caminho para os terrenos que a avó todo o ano plantava para no final do mês distribuir batatas e maçãs por todos os seis filhos... À noite depois do caldo quentinho, do arroz doce e das mílharas, ajudávamos as mães e a avó a fazer as filhozes, dormíamos todos juntos e cedinho para acordar de manhãzinha para ir ao encerro e à tarde, amontoados na carrinha de caixa aberta do tio e de vento na cara e bonés a fugir, lá íamos nós para a tourada, encafuados entre gritos e suores a comer farturas e a beber coca-cola enquanto lá em baixo crescíamos com a emoção de um povo. No último dia chorávamos como se não nos vissemos mais, a avó abraçava-nos e dizia "que grandes que estão a ficar, agora portem-se bem e rezem todas as noites ao anjinho da guarda". Nos primeiros dias de aulas nas composições enchiamos as folhas das nossas tolices e diziamos o nome da nossa terra bem alto como se fosse uma ofensa alguém não a conhecer. À noite agarravamos no telefone e pedíamos à mãe para ligar ora a um, ora a outro, e à avó. Sempre que voltávamos apitávamos ao passar na casa dos tios e todos saíam a correr, estacionávamos em casa da avó e já lá estava tudo, a mesa cheia de queijo, pão espanhol, as filhozes, "que boas ficaram as deste ano", e os enchidos "tenho de levar uns destes depois". Hoje quando chegamos apitamos perto da casa do tio mas às vezes não há ninguém em casa, passamos em casa da avó mas está vazia, vamos para nossa casa e não tem o lume aceso nem nada para comer. Andamos ocupados e cansados, há menos pessoas nas fotografias, e já não temos medo das escadas rolantes nem das algas mas carregamos muitas lágrimas. Às vezes aperta-se-me a garganta e não consigo deixar de ser a mesma mariquinhas (como me chamavam os rapazes quando dizia que não ia à serra porque haviam lobos e bois fugidos), quando nos vejo à beira da giesta, árvore de natal improvisada, a abrir as prendas com a avó a cirandar de avental a pôr a mesa de tantos lugares e o avó caladinho a tocar acordeão... Mas consigo sorrir se de repente a campanhia toca e são vocês, chega de preocupações por hoje, tenho tantas saudades! Já não vamos a casa da avó, já não nos confundimos no sótão cheio de brinquedos, mas somos maiores em coração e o tempo não apagou o que prometemos em pequeninos: não somos só primos, somos irmãos.
Comentários
obrigada, irmã, por me ter (re)lembrado a nossa infância. obrigada por não deixares que estes momentos mágicos se perdem no tempo. Garanto-te que farei tudo para que os nosssos sobrinhos vivem também eles esses momentos, para que eles também sentem um coração cheio de amor, compaixão, bondade e generosidade como tivemos com a nossa santa verdadeira avó!
A familia ja teve mais unida do que esta agora na minha opiniao...mas acho que em relação aos 5 primos...eles nunca tiveram mais unidos do que agora e so espero que continuam assim....e algo me diz que vamos passar a ser 6 ;P;P;P.Temos que passar a nossa uniao e IRMANDADE a todos os que nos envolvem cada um com as suas caracteristicas que temos vindo sempre a ter.....Não se preocupem eu continuarei e tentarei inda a continuar a fazer-vos rir;P!!
As lagrimas que também soltei enquanto lia este texto nem sei bem de onde vêm... Mas são muitas as saudades destes dias tão bons, tão "fartos" de tudo o que é essencial na vida :)
Obrigado Fá por este delicioso momento, foi um verdadeiro balsámo nestes dias atarefados :)
Não vale a pena pensar que os "natais" já não são os mesmos, nem vale a pena ficarmos tristes por já não nos sentirmos tão "quentinhos" na nossa terrinha... Mas vale sempre a pena recordar!! Gosto muito de vocês! :)
A prima mais velha
(aiaiaiaia, caraças agora já não sabe nada bem ser a mais velha...)
P.s Escusavas era de ter colocado esta foto horrorosa!!! ai como estavamos foleirinhos aqui hihihhi
Dos cinco todos nos acompanhamos, e o cédric e os piquenos um dia vão andar cada vez mais connosco! temos aquele espírito que sempre soubemos espalhar e pronto, não vale a pena babar-me mais pelos irmãos que tenho!!!
=) a marta lembrou e eu repito: bem haja a todos...
ps - realmente hoje em dia não vestem os putos tão mal como antes...tivemos mesmo azar, pff! (mas eu gosto da foto na serra!)
ps 2- sim ó gilou, tu sem querer deixas sair as tuas "tontarias" mas eu também sou tão trapalhona que não sei qual deles é pior...
Agora tudo é diferente, crescemos para vidas que não mais se cruzam a não ser nos aniversários, casamentos e funerais... Mas as recordações, essas ficarão para sempre.
=)))
bjs*