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Copos na mão, mangas e calças a roçar-se no mesmo querer, mãos dadas na instantânea gargalhada de quando estamos juntos. Nós, os amigos-desde-sempre. Entrámos e finquei as unhas com força num braço. Não importa de quem era, todos os dez-desde-sempre sabem tudo-desde-sempre. E também viram os teus olhos a brilhar por entre o néon, e o olhar hipnotizado de mim, os passos empurrados pelo íman das nossas bocas. Puxaste-me sem nada dizer, e num segundo estavamos no meio da pista mas desta vez não combinávamos as coreografias que aprendemos os dois, as voltas a que toda a gente dá o nosso nome. Tu agarravas-me pelos braços e giravas comigo pela pista, e eu tão pequenina que nem tocava com os pés no chão. E sorrias embriagado do meu corpo a pulsar contra o teu, e a respiração a seduzir-te no pescoço, a tua a arrepiar-me nos ouvidos. Até que alguém passou e sem me olhar sussurrou-te qualquer coisa e te arrancou como fita-cola o sorriso da cara, desapareceu a curvinha do lábio de cima e quando me olhaste tinhas as pupilas inflamadas de vermelho-fogo, alguém tinha estalado os dedos e quebrado o meu feitiço e os meus olhos eram só paisagem dos teus. Lançaste-me para o canto da pista para me ferir também, ferir os olhos-tentação com um circo de pessoas-ficção, verdes-vermelhas-amarelas-azuis-cinzentas, sim, todas as pessoas tinham cores que não eram as suas, e riam descontroladamente, orgásmicas, enquanto se debruçavam umas para as outras num transe carnal. Um teatro de gestos e cores fingidas. Uma voz revoltou-se nos lençóis e ecoou no meu quarto murmurando: "estou a sonhar, só posso estar a sonhar", e consegui nos interstícios de um sub-sonho dar-lhes a cara de conhecidos da rua e da paragem do autocarro sóbrios e respeitosos de malas e olheiras para o trabalho. Em dois segundos pensei nisto e em dois segundos senti-me e voar e de repente a cair sentada num canto subitamente vazio. Ao longe pela janela um carro embaciado deixava adivinhar o contorno de dois corpos na cegueira do final da noite. Uma das feições parecia-me familiar... mas não consegui ver bem, o néon apagou-se. Olhei em volta. Não havia mais ninguém na discoteca. Ninguém! Paralisei com os nervos de ter perdido a boleia, de estar longe de casa, de estranhar a discoteca que sempre soube de cor. Como é que o dj tinha saído e não tinha passado por mim? Estava há segundos à minha frente... E o pessoal do bar tinha feito as contas e saído ainda com toda a gente cá dentro? E os sempre-amigos teriam saído e pensado que eu ia com ele? Mas... ao mesmo tempo que TODA a gente? De olhar preso e a expressão esquecida, quedei-me a olhar para o fundo da parede do outro lado, até que o cenário mudou e vi a coluna de pedra antiga transformada em bancos de cinza, de panos azuis aos quadradinhos... estava no comboio. As letras vermelhas ao fundo diziam "Destino: Lisboa". "Não! Enganaram-se! Não é aí a minha casa! Aí são só os dias de acordar cedo..." Abandonei-me no banco, resignada, ainda a cheirar a noite. À minha frente uma rapariga loira muito maquilhada e arranjada lia um livro, e de súbito tive um relance da capa. "Everblue" e a fotografia de Florbela Espanca.
- Desculpe, eu conheço uma pessoa que usa esse nome! - saíram-me as palavras em choque, atropelando-se (palavras chocando em cadeia).
- Só há uma. Este é o seu primeiro grande romance!
- Mas ela não escreve... - disse baixinho, percorrendo as nossas mais recentes conversas.
- Que saberás tu!? - lançou-me, arrogante, penteando os cabelos com as mãos e desviando o olhar.
"Sei muita coisa, sei muita coisa, sei muita coisa", insisti noutro daqueles momentos entre-consciências, para repetir àquela convencida. Tarde demais. O despertador tocava. E eu acordei com um ponto de interrogação na testa. Com medo de absorver os outros com os meus sonhos, de ser entusiasmo eléctrico e êxtase secretamente frustrado se alguém tenta o mesmo que eu.
Comentários
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isso parece-me uma ida ao lux!
visões...que se misturam com sonhos...abre a pestana!
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Gosto de sonhar, mas não gosto de tudo o que sonho...