Espontaneidade


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Era tudo tão espontâneo entre eles. Ele corrigia qualquer coisa que ela dissesse. Ela lançava-se em grandes discursos tentando explicar-se e ter razão. Ele fingia não ouvir a sua longa argumentação. Ela calava-se quando percebia que se tinha perdido nos loucos artifícios retóricos de uma desorientada defesa. E ficavam assim, num profundo e ininterrupto contacto visual, desejando-se a cada insulto trocado, admirando sem o dizer cada palavra lançada, como uma seta que atinge em cheio o seu alvo, e por sorte de principiante, porque eles começaram assim, como crianças, sem manhas, sem truques na manga, sem coelhos na cartola. Irritavam-se mutuamente, por pura parvoíce. E depois concordavam nas coisas mais estapafúrdias. E não queriam dizer o bem que isso sabia. Como crianças, só brincavam. Era como se se tivessem conhecido nos baloiços e um deles tivesse perguntado: "Como te chamas? Queres brincar comigo?". E não precisavam de falar sobre as profissões dos pais, dizer o nome todo, a escola em que andavam...limitavam-se a decidir se andavam no sobe-e-desce ou no escorrega, se destruiram mais uma construção de legos ou se decapitavam todas as barbies.
Eles não queriam ser como os adultos. Usar fatos, gravatas, ter uma pose séria e enfrentar toda a gente com um olhar recto, sem comentar as calinadas ou os duplos sentidos das suas palavras. Conter as gargalhadas, os meios sorrisos, pensar em ordenados, fazer as contas do IRS, comprar um carro a leasing para deduzir nos impostos... Mas eles tiveram deixar o baloiço durante as aulas e crescer. E agora ela tem medo de o ver de fato e gravata, mais alto e sóbrio, sem caretas e talvez com entradas no cabelo!!! Ela tem medo que ele agora só possa brincar ao dinheiro e às coisas sérias de pessoas de gravata. Tem medo que ele ganhe uma ruga no cimo da testa, e tenha uma voz grave, de comando, de robot, igual aos outros! Ainda se fosse o robocop... Mas não. Seria um robot como o pai dela quando está chateado e a chama pelo nome todo, que ecoa pelo corredor e a faz estremecer em cima da cama... Mas ela ainda acredita que ele vai brincar com ela se lhe mostrar o carrinho telecomandado antigo que guardou debaixo da cama, todo sujo da última vez que capotou ao comando dela (porque ela sempre foi maljeitosa para brincadeiras de meninos mas nunca desistiu de brincar com carrinhos). Porque ela quer que ele a corriga quando ela disser algo estranho de propósito, e que a ignore quando ela insistir que tem razão, por horas e horas...

Comentários

Marta disse…
gosto do teu mundo d metáforas
Anónimo disse…
Ao ler estas "letras soltas"..deu me uma súbita e inesperada vontade de paralisar o tempo...ou melhor entrar numa máquina do tempo e recuar alguns anos atrás..até à idade da inocência, dos porquês....e aí, brincar num baloiço e naquele movimento de sobe e desce sistemático observar o céu, aquele misto de azul e branco...e no fim fazer bolas de sabão e correr atrás delas, ao som de gargalhadas espontâneas...