Avesso

O meu mundo está de pernas para o ar. É assim que o imagino e gosto dele. Completamente do avesso. E na roda da vida acho que vou virá-lo mais uma vez. Vou fazer dele a minha montanha russa e girar até à infância. E voltar, ir, voltar. Porque essa parte de mim nunca morreu. Uma e outra vez acaba por adormecer, enroscada sobre si mesma, sem se aperceber. Alguns sonos são longos, outros nem tanto. Mas a minha infância vive dentro de mim, essa criança que nunca morre ou se cansa. Que descobre a cada cheiro e a cada gesto a maravilha de estar viva. Essa criança trago-a comigo para me lembrar de sentir. Tenho essa criança em mim para me lembrar que o meu mundo está de pernas para o ar. E posso mudá-lo de novo. Posso sair para a rua e apanhar chuva, gritar ou rir e não interessa o que me podem dizer. «Porque corres, porque choras, porque gritas, porque sorris?». E eu respondo matreira: «Não sou eu, sabes, é essa criança que me assalta de quando em vez». Chamo-lhe Loucura, mas contou-me, em certa ocasião, que afinal se chama Vida. Corre atrás de mim nas ruas e chama-me para correr atrás dela, mas nem sempre oiço o seu chamamento. «Sabes, é como o piano. Gosto tanto de o ouvir que às vezes me esqueço do resto da orquestra». Eu sou o piano, mas tenho em mim violinos e guitarras. Preciso de aprender a ouvir as suas notas. Preciso dessa criança rebelde a saltar-me no peito.  Mais do que tudo isso, preciso do meu mundo de pernas para o ar. A rodar no sentido inverso dos ponteiros do relógio. E que graça teria, no fim, se o meu mundo não fosse ao contrário?  Por favor deixa-o ficar do avesso. Deixa-me girar e girar até ficar tonta neste universo sem sentido. Tão parecido comigo na sua perfeita imperfeição. Completamente de pernas para o ar.

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