Saudade

O ano começa sempre assim. Na contagem decrescente do dia em que não te conseguimos tirar do pensamento. E quando chega pesa tanto como dantes, mesmo que os anos passem cada vez mais. A tua gargalhada ainda ecoa em mim. Tento imitá-la mesmo a tua voz não saia. Eu sei que o abraço mais verdadeiro da minha vida não volta. E que mais ninguém será tão feliz a ver-me arrastar cacos de porcelana atrás do vestido rodado que a mãe gostava tanto que eu usasse. Era tão bonito mas tão perigoso nas minhas correrias. Mas nem te importavas que as prateleiras ficassem mais vazias férias após férias. A mãe ralhava comigo e tu deixavas-me raspar o arroz doce da panela. E de repente o avô desaparecia. Eu agarrava a bicicleta e serpenteava pelas ruas empedradas e pelos caminhos de cabras à procura dele. E tu lá tão atrás de passo curto e avental sujo do queijo mole que fazias ao lume, pedias que não andasse tanto. Avisavas-me que pouco faltava para ficar sem fôlego, era bem feito por te desaparecer entre as quelhes escuras e as largas árvores dos caminhos. Era sempre assim e tinhas sempre razão. Malditas alergias, espirrava quando a poeira me envolvia e as folhas passavam a coçar-me o nariz no vento da minha grande pedalada. Mas eu insistia. Passavam gastas e frias caras cobertas de luto que me chamavam ciganita pelo cabelo comprido, a face queimada do sol e suja da poeira, a quem replicavas, “é a minha neta”, e elas “que bardina te saiu”. Acabávamos por encontrar o avô a cismar sentado numa pedra, às vezes dias depois dos tios correrem a serra e a mãe que chorava a cortar as batatas para o caldo. Eu e tu sentávamo-nos ao pé dele e nem perguntávamos o que o tinha levado a deixar-nos mais uma vez, porque ele nunca respondia. Abanava a cabeça e dizia que era um menino pequenino que nada sabia. Mas lá se deixava conduzir por nós até casa, eu a cantar na bicicleta e tu calada ias guardando as amoras do caminho no bolso do avental, cada vez mais sujo. Eu pedalava ao pé do avô trauteando alguma música da rádio (“Cala-te passarito, vai tocar piano”, “Vocemecê não me ensina!”, “Tu sabes”).
E hoje percorro os mesmos caminhos entre a poeira e a saudade, distingo aquelas caras cobertas de negro, que me sorriem e me falam de ti, descobrem-te no meu sorriso. Afinal, tu nunca nos deixaste.

Comentários

negative creep disse…
eles nunca desaparecem verdadeiramente... basta que nós não deixemos
Anónimo disse…
Estão sempre connosco. Nunca deixam de ser nossos e os sentimentos puros nunca desaparecem...
*****
Marta disse…
gostava de te ver serpentear as ruas de bicicleta...=)
z disse…
speechless =)
z disse…
tenho saudadinhas tuas!!!