O meu menino

Corta o vento e despenteia o cabelo, o meu menino desafia as pedras do caminho e salta as raízes das árvores. Distraído grita e ri a vitória sobre os outros, é o mais rápido e vai chegar primeiro ao campo de futebol. Abre os braços e sente o ar puro da serra a arrepiar-lhe os pêlos da nuca. Roça nas silvas e esfola os braços,
ainda consegue roubar algumas amoras na louca corrida. E devorá-las enquanto fica com os dentes vermelhos e nas mãos o sumo mistura-se com a poeira, a pele tem um tom acastanhado mas agora também vermelho de vida e doçura. Baixa as folhas dos arbustos para passar e larga os mais baixos para lhe chicotearem o peito. Para sentir o estalo da Natureza e a adrenalina de lhe ser maior.
De repente o pé entala-se numa pedra com que não contava e deita o corpo entre a relva e o pó num embate seco e duro. Doeu, mas cerra os lábios com força e abre muito os olhos, o truque que lhe ensinara o avô para não chorar. Sente uma pontada aguda nos joelhos, e a frescura de qualquer coisa que lhe escorria pelas pernas. Levanta-se e senta-se no chão. Os amigos ainda vêm longe, cansados ficaram a comer amoras lá atrás. Nunca o conseguiam bater mas não ficavam chateados, era sempre assim, ele vivia o caminho muito mais que eles. O menino olha a pedra chateado. "Não devias estar aqui, alguém te lançou de outro lado esta tarde, eu conheço as pedras e os arbustos deste caminho todos de cor!" E atira-a para longe, chateado. Gostava de todas as pequenas coisas que pintavam a paisagem da serra como um postal, o seu reino dos livros de encantar, o seu mundo sem prédios nem fumo. Gostava de cada pedra, árvore e arbustos que o compunha, e todas obedeciam à harmonia em que ele se tinha habituado a correr. A Natureza envolvia-o porque ele sabia amá-la e aceitá-la. Sempre tinha sido a sua companheira de brincadeiras e desafios com os amigos. Porque tinha aquela pedra sido má para ele agora? "Não", pensou. "A Natureza não é má. A pedra quis brincar comigo." Já tinha caído mais vezes antes, quando ainda não era forte como a Natureza queria. Depois aprendeu o caminho, e deixou de cair. Sabia que aquela pedra redondinha como um seixo não era dali. "Só queria brincar comigo, não a devia ter atirado para longe." E ficou triste por ter sido mau com a pedra, mas repetiu para si para não mais se esquecer: "A Natureza também gosta de brincar. A Natureza é como eu!" A Natureza é como ele. A Natureza, é ele.
De súbito lembrou-se da roupa e dos joelhos, da mesma cor que as suas mãos. Escura e pintalgada de vermelho, e agora não de amoras, mas de sangue. E tinha as calças rotas nos joelhos, como todos os dias. Normalmente era da bicicleta ou de montar muito depressa nas burras e nos cavalos, o tecido cedia e rompia. Mas hoje tinha os joelhos esfolados. Levantou-se e sacudiu a poeira maior. Limpou o sangue com a ponta mais limpa do lenço do nariz, enrolado e sujo num dos bolsos das calças. Ele preferia limpar-se à manga da camisa, era mais cómodo, mas a mãe era teimosa. Afinal se lavava tudo, mais um lenço era mais trabalho, mas a mãe não entendia o seu sentido prático, nunca tinha corrido tanto como ele pelo monte. Era uma senhora de casa, irmã mais velha dos seus cinco irmãos, sempre tinha tratado de todos como mãe enquanto a mãe deles recolhia o almoço e o jantar no campo.
Já mais limpo e recomposto, caminhou até aos amigos que deliciados comiam amoras deitados no chão, aprenderam com o meu menino a não se preocupar com a roupa estar suja - a mãe lavava sempre, mais suja menos suja. Disse-lhes que tinha de ir buscar as vacas ao terreno, o pôr-do-sol não tardava e depois ficava escuro. Todos se ofereceram para ir com ele, mas como sempre negou. "Minha mãe quer que eu vá sozinho, para aprender." Todos encolheram os ombros, já esperavam uma resposta assim.
E lá foi o meu menino, a mascar uma palha como o Oliver Twist, porque todos os meninos do campo são assim. Foi para casa para que a mãe lhe tratasse dos joelhos, mas não podia dizer isso aos amigos. Ele era o mais forte, e tinha ensinado que as mazelas ficavam para o fim do dia, até lá havia muito para correr. Mas os joelhos sangravam mesmo muito, tanto que se permitiu a dar uma folga à sua valentia.
Entrou em casa, cheirava a canela. A mãe estava a fazer arroz doce para o jantar, porque o avô fazia anos! Lançou-se para o fogão e quase se esqueceu dos joelhos. Mas ao tentar correr, mancou e a mãe reparou. Agaçou-se e soprou pelo buraco das calças, acalmava sempre a dor. Olhou-o compadecida. "Anda que te trato isso", e levantou-o pelos braços.
E só naquele dia antecipou a melodia que o embalava entre os lençóis. Enquanto lhe limpava a ferida e lhe afagava o joelho, cantou baixinho:

"O meu menino é d'oiro
É d'oiro fino
Não façam caso que é pequenino
(...)

Quantos sonhos ligeiros
p'ra teu sossego
Menino avaro não tenhas medo
Onde fores no teu sonho
Quero ir contigo
Menino de oiro sou teu amigo

Venham altas montanhas
Ventos do mar
Que o meu menino
Nasceu pr'amar
(...)"

O meu menino é d'oiro, Zeca Afonso

Comentários

o alquimista disse…
Sempre que a tarde cai soltam-se as amarras ao pensamento, sente o encanto da brisa, olha o sorriso da lua...
Desejo-te uma semana cheia de sonho, de mil venturas.


Doce e terno beijo
z disse…
deixemo-nos de paninhos quentes, quando é que o letras chega à fnac? hein hein?
Fátima disse…
LetraSoltas na Fnac em Março! ;P

Ó YÉ!
z disse…
caraças, já gastei os vales, mas eu bou comprar e cobrar uma dedicatóriaaa só pra minhé!=P
Fátima disse…
vais ter, a maior ;P