Ao meu tio Gil



Olá, meu querido tio. Tio de sorriso fácil no rosto, marca de família, de bochechinhas vermelhas e olhar bondoso. Somos todos baixinhos, mas tu eras o mais pequeno. Desde criança que sempre foste o mais sensível, contaram-me que tiveste muitas otites e que, por isso, ainda agora ficavas muito feliz quando te oferecíamos um cachechol, que seguravas acima das orelhas para tapar os ouvidos - especialmente naquelas noites frias de Aldeia Velha...
Eras a imagem da serenidade, o mais calmo entre a loucura toda da família, e estava sempre tudo bem para ti. Foste polícia, e metíamo-nos a toda a hora contigo para que nos contasses histórias de perseguições e crimes, mas nunca te fizeste de herói. Ser chefe de esquadra não era muito importante para ti. O melhor que te podiam dar no trabalho era uma licença para tirar os dias todos da festa de Aldeia Velha, fugindo aos turnos malucos que sempre tiveste que fazer. Eras feliz à mesa connosco, sempre caladinho mas sorridente. Foste um pequeno génio, acabaste o 12º ano com óptimas notas e brilhavas nas aulas de música, pois tocavas de ouvido. Conta-se que, ainda não tinhas cinco anos, e já o avô te punha o acordeão no colo, para que tocasses o "Vira" com os teus dedos pequeninos, a animar a malta toda da taberna dele. Um pequeno prodígio que todos adoravam e seguiam. Animavas as festas de família com a tua música e não havia encontro ou sardinhada da malta da aldeia para onde não se levasse o acordeão, para te pedir que tocasses. Como eras tímido, tínhamos que pedir com muito jeitinho. Mas mal te vias com o acordeão no colo, era festa para toda a noite. Sabes tio, vou tentar seguir esse legado. Cheguei expressar-te esse desejo, e combinámos arranjar tempo para que me ensinasses a tocar. Mas não arranjámos, tio... o trabalho e todas as coisas fúteis em que nos envolvemos roubaram-nos o tempo que não tivemos. Ensinaste-me a tocar piano, com muita paciência, depois de teres percebido que eu, como tu e o avô, conseguia tocar de ouvido. As tardes divertidas que passámos, os dois, a descobrir músicas sozinhos, com o livro de música sempre, sempre fechado. Ler notas? Nós nunca precisámos disso, tio. Quem me vai agora ensinar a tocar acordeão, tio? Além de professor de música, eras também leitor e corrector ávido dos meus textos. Agora, quem me fará correcções gramaticais, quem irá brincar com a minha mania de abusar nas vírgulas? Lembras-te de teres corrigido o discurso da capeia do Cédric? Lembras-te de toda a gente ter chorado quando ele o leu? Bem hajas, tio. Sei que este texto terá vírgulas a mais e não é tão poético como tu mereces... ainda não consigo escrever nada de jeito. Mas precisava tanto de escrever para ti, tio. Onde estiveres, espero que saibas o quanto te admirava e adorava. Sei que te transmiti isso. Mas não te esqueças.
Agora voltaste ao colo da avó, o nosso lugar preferido. Dá-lhe por nós um abraço daqueles, forte, dos que deixavam o cheirinho das filhozes e arroz doce no corpo. Bem haja por seres sido o meu tio Gil.

Comentários

Isabel Gomes disse…
Que bela homenagem, cara Fátima. Fiquei comovida.

Ontem a Liliana, quase com as lágrimas a brotar, disse-me que tinha falecido repentinamente o pai da sua amiga Andreia. Também eu fiquei triste com a noticia. Meus pêsames pela vossa perda.

"Consola-nos a certeza de que aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós..."

Isabel Gomes

http://osmeusremedioscaseiros.blogspot.com
Fátima disse…
Bem haja. Um grande beijinho, um abraço
Alexx M. disse…
Texto lindo, minha pequenina. O teu tio não precisa de menos vírgulas nem mais poesia, porque tem nas tuas palavras todo o amor que sentes por ele. Tem nos teus dedos ao piano toda a alegria partilhada. Não houve tempo para o acordeão, porque a vida é matreira e tira-nos o tapete debaixo dos pés demasiado depressa. Mas houve tempo para o amor, para as gargalhadas, para a felicidade. Foi cedo de mais, mas foi de coração cheio. Beijos e muita força querida***
Fátima disse…
Obrigada minha querida ******