Cartas ao meu tio - I

Passaram catorze anos desde que a avó nos deixou. Catorze. Quase tantos como a idade do neto mais novo, dezasseis. Ele talvez não se lembre bem dela, mas o seu carinho mora no coração dele. Naqueles Verões quentes do final dos anos 90, a avó ainda pode provar as suas bochechas gordas de bebé e pentear os loiros caracóis dele. "Anda por aí um anjinho", dizia o avô, contemplando aquele pequeno e trôpego bebé com ar de querubim.
Passaram catorze anos desde que descobrimos a mais profunda dor, pela qual nunca ninguém devia passar: a de perder a avó do mimo, das conversas ao lume, do caldo escoado às duas da manhã, das doces filhozes no Natal e as mílharas nas festas de Aldeia Velha. Desde então que sonhei em criar uma bolha invisível, onde pudesse guardar toda a minha família, uma mesa de onde nunca ninguém se pudesse levantar e onde nada de mal podia acontecer. Passaram anos e descobri que a minha bolha tinha defeito - por vezes tivemos novamente à beira de sentir a mesma tristeza que no dia da partida da avó, mas logo nos juntávamos à mesa de jantar, e os medos feios que nos ameaçavam deixavam os meus mais importantes em paz outra vez.
Sabes tio, às vezes tinha pesadelos sobre essa tristeza, o medo de perder um dos meus tios, os teus manos ou cunhados, mas reconfortava-me pensar que são novos e que ainda teríamos muitos Verões juntos. Até que, a oito de agosto deste ano, quando já todos tínhamos começado a contar os dias até às festas da aldeia, o meu telemóvel toca com a notícia que nunca podia esperar. Tu, tio Gil, tinhas partido. A avó e o avô vieram buscar-te para perto deles. A notícia veio abrir em mim novamente a ferida deixada pela partida dos avós.
Passou agora uma semana e ainda me sinto como um zombie, a pairar nesta realidade alternativa que é a tua ausência, como se alguém me tivesse obrigado a atravessar um portal para um mundo feio e escuro onde não quero viver. Sinto que ainda não acordei deste pesadelo, quero que me digam que é tudo mentira e que no dia 24 de agosto estaremos todos à mesa nos nossos melhores fatos e vestidos. Nós não nos reunimos a quatro ou a cinco como as famílias dos nossos tempos, mas a vinte ou a trinta de cada vez, e cada cadeira vazia tem para nós o peso de uma saudade imensa. Quando um de nós não pode ir a um almoço ou jantar, ou às festas da aldeia, sentimos a sua falta e não nos sentimos completos. Quando os avós partiram, tivemos de nos habituar a sermos "só nós", mas "só nós" eram os tios e os primos todos à mesa.
Sabes tio, ontem à noite comecei a sentir uma forte dor no peito, já não conseguia chorar mas doía-me qualquer coisa por dentro. Percebi que é aquela fase do luto em que o choque vai passando e dá lugar à saudade eterna da tua presença.
Aproximam-se as festas da aldeia e, fortes como somos, vamos reunirmo-nos todos e pensar em ti. Vontade de beber e brindar ninguém tem, mas precisamos de  estar juntos e prometer em silêncio que serás sempre lembrado. Em silêncio, porque este ano não nos vais tocar acordeão. Ainda é cedo, mas a tua música voltará. Eu acredito.

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