deixei-me cair

o despertador chamava por mim mas eu não respondi. ouviam-se passos no corredor, o meu nome arrastava-se pelos pés e o cheiro do café entrava suavemente no quarto. o dia acontecia, eu deixava-me ficar. tinha o plano perfeito. enrolei os lençóis ao estrado da cama e dei nós que nem o mais hábil escuteiro conseguiria desatar. enrolei-me toda na manta mais pesada da cama, qual crepe chinês eu era só camadas e camadas de lã fofa e aconchegante. e deixei só o meu nariz de fora, uns fios de cabelo mais rebeldes que resistiram ao meu bunker, e deixei-me estar, até que se esquecessem, que desistissem de mim. quando tinha cinco anos gostava de brincar aos submarinos e mergulhava na cama a fingir que era o mar e contemplava as mais incríveis espécies de peixes entre os lençóis. gostava de me afundar na cama até ficar tão quentinho que o mundo lá fora parecesse impossível. e de ficar tão escondida que a minha mãe procurava por mim e me descobria à força das cócegas.
mas naquele dia não havia mar nem nem calor nem cócegas que me trouxessem à superfície. naquele dia deixei-me ficar enrolada nos lençóis e nas mantas até que a casa esvaziasse e se esquecessem de mim. até que o silêncio absorvesse a casa e engolisse a minha ausência. naquele dia eu era pijama e cama e estou doente e não vou trabalhar. naquele dia eu era uma criança de 5 anos que põe o termómetro no copo de chá para fingir que tem febre. naquele dia eu não aguentava mais o peso do mundo. naquele dia eu desisti.

e enchi outra vez a impressora de papel e voltei ao meu computador.

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