Alma poética
Acordei com um aroma adocicado de orvalho nas narinas e a janela, como habitualmente estava aberta. A cama cheirava a lençóis de linho novos, o coração cheirava a café com leite a fumegar. Procurei debaixo da cama, dentro do armário mas o papão ainda não tinha aparecido. Talvez tivesse adormecido como da outra vez, na soleira da porta. A minha sombra estava descosida como a do Peter Pan. Era tudo bonito. Eu estava sozinha (até sem sombra) e a beleza doía nos olhos e na boca sedenta de beijos. Os olhos eram escuros e castanho-vazio. O gato malhado esperava a andorinha sinhá. Eu esperava qualquer coisa. Mas do céu nem chuva nem vento. Prendi a fita no cabelo e liguei a rádio. Arrumei o quarto mas não tinha tempo para arrumar a vida. Deixei-a ficar assim como debaixo da minha cama, um lugar onde se pode encontrar facilmente de tudo, onde se escondem coisas. Escondi sentimentos debaixo da minha cama. Escondi lágrimas no bolso esquerdo do casaco. Amarrotadas como um papel com um qualquer número de telefone. O bolso era grande, enorme, gigante e o número do príncipe encantado estava lá. E o mail também. Porque os príncipes modernos assim são. E o sapato da cinderela ficou numa poça de lama bem funda. Mais uma história de frases disconexas. Mais uma prece à e pela vida. Uma corrente de sentimentos na ponte de todos os marasmos. O amor na corrente, um arrepio a percorrer a corrente de todos os desejos.
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