Partir
Há dias em que percebo porque é que o meu avô se foi embora, de repente e sem olhar para trás. Tinha uma barbearia/taberna na aldeia, lia cartas a quem não sabia ler nem escrever, animava as festas com o seu acordeão e todas as noites, de segunda a domingo, tinha um sorriso para servir com um copo de vinho. Mas chegou o dia em que tudo isso era pouco, que viver para alegrar os outros já não o alegrava a ele. Chegara o momento de partir. A minha avó sempre soube que o marido era uma alma livre, que a aldeia era demasiado pequena para ele. Arrendou a barbearia/taberna e partiu rumo a Paris, como tantos emigrantes da época, a salto, pela fronteira e sem papéis. Nos anos 50 em Portugal, muitos eram os que partiam por necessidade ou pelo desejo de uma vida melhor, para si e para os seus filhos. Mas o meu avô não. Tinha um bom sustento na aldeia, conseguia ter todos os filhos na escola. Bem, na altura tinha três filhos - dois meninos e uma menina -, e mais tarde chegou a seis. A minha mãe sonhava em ser professora de línguas. Mas então o meu avô partiu. Em nome do seu sonho. Em Paris, conseguiu trabalho numa fábrica, onde para ganhar mais dinheiro, também servia almoços e jantares aos trabalhadores, na cantina. Nesses momentos, aproveitava para fazer aquilo em que era melhor: dar o ar da sua graça. Lia, às vezes de maneira cómica e teatral, as cartas das famílias dos operários, pois tal como na aldeia, muitos não sabiam ler nem escrever. Pegava na concertina e tocava músicas portuguesas, alegrando quem tinha feito um tremendo sacrifício para sair da sua terra natal. Ele não, partiu porque lhe apeteceu. Brilhava, fazia as delícias de tudo e todos. Já falava francês mais ou menos bem, desenrascava-se como ninguém num país desconhecido. Mas essa alegria escondia, como sempre, uma terrível ansiedade. Não estava bem em lado nenhum. Então comprou uma bicicleta com o dinheiro que juntara ao longo de meses e deixou o emprego. Diz-se que correu a Suíça, o Luxemburgo, a Alemanha. Ninguém sabe se é verdade, mas o olhar dele tinha aquele brilho de quem se atrevera a sonhar numa época em que Portugal vivia a pão e água. São tempos diferentes os que vivemos hoje em dia, mas no fundo de dilemas semelhantes. Criar uma família, limitar-se a uma morada e descobrir as doçuras da paternidade, ou devorar o mundo, viver cada dia como se fosse o último, mas eternamente sós? Somos frases de ponto final anunciado, com apenas algumas oportunidades para fazer uma vírgula - que determina irremediavelmente o destino da frase. Uma vírgula com data de validade, que expira dia após dia. O que somos senão liberdade, liberdade de ficar ou de partir? Todos os dias fazemos essa escolha, todos os dias condenamos à partida um destino totalmente diferente. A vírgula tem de valer a pena. Antes que se torne um ponto final.
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