O guardador de livros
Não tenho muitas histórias de traquinices de infância. Quando os meus pais falam dos meus tempos de criança, contam que sabiam sempre onde estava a minha irmã - era onde havia mais barulho, algazarra, confusão -, e nunca sabiam de mim. Andavam pela casa a chamar o meu nome, até me encontrarem num cantinho agarrada a um livro, alheia às revoluções de bonecos da minha irmã, ou à preocupação dos meus pais em saber do meu paradeiro. Tudo o que me interessava era a história dentro daquelas páginas, as letras que saltavam frente aos meus olhos e se tornavam nas aventuras mais emocionantes que eu podia viver, assim, quieta e caladinha, no meu canto. As melhores aventuras que vivi na minha infância eram as dos meus melhores amigos, os heróis dos livros. Não há grandes relatos meus a partir a cabeça em brincadeiras parvas ou a cair aparatosamente de bicicleta - eu simplesmente não tinha grande interesse em correrias e brincadeiras perigosas, preferia ler as dos meus amigos imaginários, perfeitamente segura no meu sofá. As dores de cabeça que dei aos meus pais não envolveram noites no hospital ou visitas constantes ao centro de saúde, como a minha irmã que partiu o queixo a brincar no banho, que caiu de skate e de bicicleta quinhentas vezes; não - o coração da minha mãe batia mais depressa quando passávamos pelo quiosque de livros e revistas que havia a caminho da minha escola primária, e a minha insistência em comprar 'só mais um' todos os dias fez com que ela alterasse a rota para a escola para o caminho mais longo, para evitar o quiosque. No continente, ela quase corria quando passávamos pela secção de livros, o que devia ser tão aborrecido para ela como para mim, já que ela gosta tanto de correr como eu. Enquanto os meus primos e a minha irmã deixavam os pais à beira de um ataque de nervos quando partiam estrados da cama a saltar ou joelhos a correr de bicicleta, eu exasperava a minha mãe quando me lançava em longas retóricas sobre a necessidade de completar a minha colecção de 'Os Cinco' e começar a do 'Clube das Chaves' - e ela tentava dar-me a volta dizendo 'lês tão depressa que não tomas atenção, aposto que se leres novamente compreendes melhor a história', num titânico esforço em não gastar todo o orçamento de casa em livros para mim.
Quando a minha mãe era finalmente vencida pelo cansaço e percebia que eu já tinha lido todos os 'Cinco' e as 'Chaves' umas dez vezes cada um, e anunciava uma visita ao Shopping para comprar mais um livro, eu ia aos pulinhos até às secções de livraria, com mil ideias de livros para ler. Para outros miúdos, devia ser o equivalente a comprar chocolate (que eu não podia, por ser alérgica - preenchia todo o cliché da miúda nerd-totó, de facto), ou uma barbie. Naquela altura, os grandes gigantes do retalho livreiro ainda não dominavam o negócio, pelo que além dos corredores do continente, eu tinha ainda as pequenas livrarias do centro comercial, para me deliciar e fazer 'um dó-li-tá' durante horas, para meu desespero e da minha mãe, que só me deixava levar UM livro de cada vez. Na imensa tortura que era ter de escolher apenas um livro, o meu melhor amigo era o Zé Carlos. O Zé Carlos é um amigo dos meus pais, artista, com talento para a pintura e a arquitectura (ninguém pinta uma casa de pedrinha, típica da beira alta, com tanto pormenor como ele), que escolheu levar a vida entre os meus melhores amigos, os livros. Nos meus maiores apertos e quando já se via a veia na têmpora da minha mãe a saltar - aquela que vem de família, que já tinha o meu avô e todos temos, e à vista da qual toda a gente deve tremer -, ela dizia 'vamos pedir ajuda ao Zé Carlos'. Como quem tira um coelho da cartola, ele sabia sempre que livro me aconselhar, e qual mago dos livros, acertava sempre. Dali a uns tempos eu havia de passar pela pequena livraria onde ele estava, e comentar, "tinhas razão, gostei muito!". Nunca mais me esqueço de quando me aconselhou o Harry Potter, quando eu tinha doze anos e o livro e a autora ainda eram perfeitos desconhecidos para o mundo. A capa era roxa e tinha corujas, o autor assinava com siglas e, pensava eu, parecia nome de homem (J.K. Rowling). Disse o Zé Carlos 'estive a ler e parece-me que vai ser um sucesso daqui a uns tempos'. Não podia estar mais certo - li-o num ápice e aconselhei-o a todos os meus amigos da escola. De repente, o Harry Potter era um sucesso, e eu tive a certeza, o meu amigo guardador de livros é o melhor.
Este domingo foi a noite dos Óscares e uma atriz, a Viola Davis, disse algo que não consegui esquecer, que foi algo assim: "as melhores histórias são aquelas de quem sonhou e falhou, de quem lutou e ainda luta, de quem está sentado no jardim da sua casa a pensar no que podia ter sido ou ainda pode ser". Nas histórias, nos livros e nos filmes, não nos podemos esquecer de quem passou pela nossa vida e deixou uma marca, uma história. Pouco importa impressionar um grande CEO de uma empresa ou tornarmo-nos milionários, se não soubermos reconhecer a beleza dos pequenos actos, se não tivermos a sensibilidade de nos lembrarmos de quem nos deu para a mão as mais belas histórias que pudemos ler. Clichés à parte, não nos esqueçamos de quem ficou pelo jardim da sua casa ou numa pequena livraria entretanto já fechada, pois esses, que tantos desprezam, sabem contar as melhores histórias.
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