Cartas ao meu tio - VI

Sabes tio, às vezes não sei se ter recordações é bom ou mau. Enquanto andamos no corropio da rotina, o stress do emprego e o que vai ser o jantar, ou se chegamos a tempo àquele encontro de amigos porque a segunda circular está um terror e ainda por cima chove, não nos lembramos muito. Nesses dias, na nossa cabeça só há espaço para o cesto da roupa suja a abarrotar, as calças por passar a ferro e a ração do gato a terminar. Esses dias, que parecem nunca mais terminar, são afinal mais fáceis que os outros: aqueles em que paramos para escrever a lista de Natal e percebemos que há menos uma pessoa a quem oferecer prenda, menos um lugar à mesa, mais um acordeão abandonado no canto da sala. Já não bastava o do avô, agora também o teu jaz mudo e calado, para nos lembrar que a música abandonou a nossa mesa.
Sabes tio, o Zé ligou-me de Aldeia Velha e disse que amanhã, faça chuva ou faça Sol, vão todos à lenha. Vão limpar o prad'AnaRamos, o terreno da família - o nosso "tchão". Só agora percebo porque chamam "tchões" aos terrenos, por aqueles lados. Aquela aldeia, aquelas pessoas, são o chão das nossas poucas certezas. Foi desses "tchões" que brotou a nossa vida, a sopa que com tanto amor a avó nos fazia, com os legumes que cultivava de mãos calejadas e secas do Sol. Essa vida, a dos "tchões" da nossa aldeia, continua, mesmo sem ti. É injusto, eu sempre disse que podias passar a reforma na aldeia, a fazer crescer os legumes e batatas que traríamos para a cidade, para fazer inveja aos amigos que pagam dois euros por cada quilo de qualquer coisa num mercado biológico. Mas já te queixavas das costas, das pernas, não podias cumprir esse teu (meu?) desejo. Enquanto penso nisto, percebo porque tanto choramos quem nos deixa. São as saudades, é a tua voz longínqua, é o calor do abraço que foge, mas é também, e sobretudo, o não ter feito, o não ter dito e redito. Arrependo-me de não te ter ligado mais vezes, de não saber de ti durante semanas, julgando que obviamente estarias bem, arrependo-me de não te ter perguntado porquê, porquê?, porque é que não te preocupavas contigo e não deixavas o que te fazia mal. Nunca entendi, mas sabia que não devia falar contigo sobre isso. Não tivemos essa conversa, mas podia ter-te convidado cá a casa, esta onde também viveste, há trinta e tal anos, e que eu renovei há um ano. Choramos por aqueles que nos deixam porque não fizemos tudo o que devíamos, e a culpa dói tanto ou mais que a saudade. Por isso é que quando penso em ti, para fazer as pazes comigo mesma, lembro mais os tempos em que me ensinaste a tocar órgão e menos os últimos anos. Dos últimos tempos, agradeço ter passado os aniversários contigo, por ter insistido em fazer a tua festa de 60 anos, mesmo quando disseste que não querias e nem ias aparecer - odiavas ser o centro das atenções, até quando te pedíamos para tocar um pouco de acordeão ou guitarra.
Parece demasiado cliché dizer que devo aprender algo com a tua súbita partida, mas sei que é o que devo fazer. Às vezes apareces-me em sonhos e dizes que estás bem. Quero acreditar nisso, e ficar em paz também. Esse dia chegará, espero.

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