herói ou vilão

O meu avô é como um herói dos livros. Nunca o conheci bem e, no entanto, sempre ouvi falar dele. Quando nasci, ele já não estava em condições para me contar as suas aventuras do passado. Um avô tem sempre histórias para contar. Mas o meu tinha mais. E por isso tenho pena de ter sempre ouvido na terceira pessoa as suas aventuras e desventuras pelo mundo dos homens. Quando me contavam quem tinha sido o meu avô, eu olhava para ele, de olhos arregalados, aquele velhinho que se fazia pequenino e frágil no sofá da marquise, encolhido em si e de mãos cruzadas no peito, de olhar fixo num ponto invisível. Dizia ele que era um menino pequenino, que não sabia nada da vida, e que queria fugir. Estas eram das poucas coisas que ele dizia. Um dia, depois de muitas histórias que me contaram sobre ele, percebi.
O meu avô foi de pequenino trabalhar para uma casa de uma família rica da aldeia, onde aprendeu a ler e a escrever, a escutar às portas dos meninos ricos que aprendiam em casa. Também aprendeu a tocar acordeão, piano, guitarra e flauta - tudo sozinho. Os meninos tocavam e ele imitava. A música corria-lhe pelas veias. Foi também naquela casa que aprendeu o ofício de barbeiro, que naquele tempo envolvia não só aparar barbas e cortar cabelos, como curar feridas e agrafar cabeças partidas. O barbeiro era uma espécie de enfermeiro naquelas aldeias a dias de distância dos hospitais.
Quando a idade lhe permitiu, abriu uma barbearia e inventou um novo ofício: o de taberneiro. Na taberna no meu avô, tanto se serviam copos como se faziam barbas e se agrafava a cabeça do miúdo que caiu a andar de burro. Nos serões da taberna do meu avô, ainda se liam cartas de familiares emigrados e se resolviam burocracias: afinal o meu avô era dos poucos que sabia ler naquela aldeia. Era para o meu avô que todos se viravam, na alegria e na tristeza, para um copo de vinho ou uma guitarrada, ou para ler a carta do filho que estava em França.
Mas o meu avô cansou-se cedo da vida de taberneiro e barbeiro. Os livros alimentaram-lhe ambições, e trocou a taberna por um contacto em França. Partiu, contra a vontade da minha avó, a minha mãe e os meus tios, que se tinham habituado aos serões da taberna, em que ele os sentava no balcão e acompanhavam com a voz o meu avô à guitarra. Quando ele partiu para França, foi também quando a minha mãe e os meus tios, que devido ao negócio do meu avô tinham conseguido ir todos para a escola, começaram a ver o seu futuro mais enevoado. A minha mãe sonhava ser professora de português e francês, e já estava no 5º ano, num colégio na Guarda, quando a minha avó percebeu que não dava mais e teve de tirar os filhos da escola. Eram seis crianças, todas com livros e quartos no colégio para pagar, que na aldeia não havia mais que a escola primária.
Entretanto, o meu avô tinha aprendido a falar e a escrever francês, devido à facilidade que tinha em aprender, e arranjara um trabalho na fábrica da Vichy. Mas só trabalhou até ganhar dinheiro para comprar uma bicicleta e atravessar França, Suíça e Alemanha em duas rodas. Viveu durante vinte anos como um bon vivant em França, de peito e sorriso embriagados pela liberdade.
Às vezes penso em como gostava de fazer o mesmo que ele, deixar tudo e partir, começar de novo e largar as amarras. Mas depois lembro-me como a minha mãe não pode ser professora de português como sempre sonhou, e o meu tio Eusébio veio para Lisboa carregar mercearias desde o Terreiro do Paço ao Castelo de S. Jorge. Não consigo decidir se o meu avô foi um herói ou um vilão. As suas histórias fazem-me vibrar de curiosidade, e tento inventar a vida que levou em França - dizem que se deixou enamorar no Molin Rouge... Mas ao mesmo tempo penso na minha avó, que envelheceu a trabalhar de sol a sol no campo, e a minha mãe, que tanto queria ensinar, e não quero saber mais histórias sobre ele.
Gostava de ter conseguido falar com ele, saber se valeu a pena. Gostava de saber se valeu a pena voltar para o amor-ódio dos filhos e da mulher, para se abandonar num sofá de uma marquise. Gostava mesmo de o ter conhecido.

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