Ela
Sempre que oiço a notícia de uma morte, lembro-me dela. Especialmente quando são mortes injustas, prematuras, forçadas por doenças más, impiedosas, que escolhem à sorte quem atormentar.
Lembro-me dela, do sorriso que sempre nos guardou mesmo quando a vida a castigava sem que ela merecesse castigo. Quando o meu avô se recusava a comer. Quando o máximo que levava para a cama era um copo de vinho e um pedaço de pão espanhol com queijo la vache qui rit, um único que gostava. Ele comia sempre de pé, de olhos perdidos fixos num ponto invísivel, esquecido das vinte ou mais pessoas que o rodeavam à mesa, sentadas, regaladas com os almoços fartos da minha avó. E ela sorria-nos e fingia que não ligava àquele homem de 70 anos de comportamento de 5, que não queria comer, que dizia que era um menino pequenino que não sabia nada, que queria morrer, que apontava para o cemitério e dizia que queria ir dormir para ali, que fugia de casa para a serra e que às vezes só encontrávamos dias depois. Que punha toda a aldeia à procura dele.
Uma vez encontrei-o eu, esbaforida de bicicleta, bronzeada pelo calor da aldeia. "Cigana!", disse ele quando me viu, sentado à sombra num muro de pedra perdido nas encruzilhadas da serra. Não me conheceu. A minha avó, de passos curtos e olhar ausente mas triste pela rotina que se tinha tornado as fugas do meu avô, alcançou-nos depois de eu ter gritado que o tinha encontrado. Parou a passos dele, baixou os olhos e puxou-lhe o braço, sem nada dizer. Ele começou a gritar o que dizia sempre: "eu sou um menino pequenino! Eu não sei nada!" Olhava-me com desconfiança, enquanto a minha avó o arrastava pela serra abaixo, eu com a bicicleta pelo braço. Até que a minha avó lhe disse "Então não vês. É a fatinha, da Elce". E ele olhou para mim. "Passarinho..."
Sempre esta rotina, e ela nunca esmoreceu, nunca se queixou, nunca nos deixou ouvir nenhuma palavra de raiva contra a doença mental do meu avó. Contra o seu destino ingrato, há anos a cuidar de um homem que a condenou a cuidar de seis filhos, que deixaram de estudar quando os sonhos se adivinhavam e começaram a trabalhar aos 12 anos, porque a mãe não tinha dinheiro. Na aldeia, o povo, com pena do sofrimento daquela mulher, que nunca se tinha conhecido igual, ditava: "ele doente ha tanto tempo, mas ela ainda morre primeiro e ele fica desamparado..." Agoirentos. Estúpidos. Odeio-os. Foi mesmo assim. Ela nunca cuidou de si, porque só cuidava dele. Não tinha tempo para ela. Tantos sinais de doença, tanto tempo de anemia, e ela recusava-se a sair da aldeia, recusava-se a deixá-lo sozinho. "Quem cuida dele?" "Alguém cuidará, avó" "Ele não come. Não deixa que ninguem lhe toque" "Agora é tempo de cuidar de si, ele está bem" "Não estará, quando eu não estiver..." E tinha razão.
Ele também o sabia. Não era tão doente nem tão perdido como se fazia. Um dia, antes de irmos embora de Aldeia Velha, fomos todos despedir-nos dele ao quarto, à vez. Voltavam de braços encolhidos - ele nunca dizia nada, nao cumprimentava, nada. "Xau, avó. Beijinhos. Voltamos no Natal...", e fiz-lhe uma festa na cara, mesmo sabendo que ele não gostava e que podia levantar a mão contra mim. De repente, olhou-me, apertou-me o braço e disse-me, de olhos muito abertos "Não vás, que a tua avó está doente. Não vás. Fica a cuidar dela". E eu tremi, ele nunca me tinha falado assim. Ele nunca falava. A ninguem. E disse-lhe, nervosa, no alto dos meus 10 anos. "Mas a escola..." Porque eu nao sabia que a minha avó estava doente. Ninguem sabia. Só ela, em segredo. "Sim, vai para a escola. O teu lugar ao pé dos teus pais. Vai, vai, vai-te embora". Voltou a fitar o tecto da sua cama, perdido. Sai, nervosa, a chorar. Naquele dia,não consegui contar aquele episódio a ninguem. Guardei-o para mim, mas tive medo. A avó estava doente? Mas parecia tão bem...
Meses mais tarde, um cancro no estômago. A minha avó. O meu avô no lar, sem que lhe fosse explicado nada. "Ele não percebe" "Ainda lhe dá uma coisa" "Ele fica agressivo".
E confirmavam-se os ditos do povo. Ela faleceu. A vida castigou-a por ter sido demasiado boa. Anos a tratar de um homem alcoolico, esquizofrénico, agressivo, doente, louco. Anos depois de anos em que ele se passeava pela europa de bicicleta e ela cuidava de 6 filhos que ele lhe foi deixando quando voltava a portugal. A trabalhar no campo, de sol a sol. a pagar a fiado, sempre que à espera que ele mandasse dinheiro de frança.
Meses depois de ela ter morrido, ele morreu tambem. Como ela tinha ditado, nao sobrevivia sem ela. Nunca soube que ela tinha morrido, que ninguem quis que se lhe dissesse. "Ainda lhe dá uma coisa" Na verdade, era a raiva do que ele tinha feito à mãe deles, seis irmãos, unidos entre a raiva e o amor a um pai que nunca tinham conhecido. O amor que tinham visto nos olhos dela, por ele. Só o amor podia justificar uma vida assim, tão dedicada, tão perdida...
Tenho tantas saudades dela. De como me abraçava, de como se ria quando eu dizia parvoices na igreja, baixinho ("Se ele nasceu ha muitos anos, porque dizemos hoje que nasceu, e nao lhe cantamos os parabens?" - Era dia de natal), de como me mostrava às amigas na aldeia "É a fatinha, filha da minha Elce", com um enorme sorriso e orgulho nos lábios - eu era a filha, a neta, que demorou 10 anos a nascer.
Tenho saudades dela. E sempre que morre alguem, assim, injustamente, como morreu Antonio Feio, levado por aquela doença horrivel que aprendi a odiar como o meu unico e verdadeiro odio, doi-me a morte dela como no dia em que morreu...
Lembro-me dela, do sorriso que sempre nos guardou mesmo quando a vida a castigava sem que ela merecesse castigo. Quando o meu avô se recusava a comer. Quando o máximo que levava para a cama era um copo de vinho e um pedaço de pão espanhol com queijo la vache qui rit, um único que gostava. Ele comia sempre de pé, de olhos perdidos fixos num ponto invísivel, esquecido das vinte ou mais pessoas que o rodeavam à mesa, sentadas, regaladas com os almoços fartos da minha avó. E ela sorria-nos e fingia que não ligava àquele homem de 70 anos de comportamento de 5, que não queria comer, que dizia que era um menino pequenino que não sabia nada, que queria morrer, que apontava para o cemitério e dizia que queria ir dormir para ali, que fugia de casa para a serra e que às vezes só encontrávamos dias depois. Que punha toda a aldeia à procura dele.
Uma vez encontrei-o eu, esbaforida de bicicleta, bronzeada pelo calor da aldeia. "Cigana!", disse ele quando me viu, sentado à sombra num muro de pedra perdido nas encruzilhadas da serra. Não me conheceu. A minha avó, de passos curtos e olhar ausente mas triste pela rotina que se tinha tornado as fugas do meu avô, alcançou-nos depois de eu ter gritado que o tinha encontrado. Parou a passos dele, baixou os olhos e puxou-lhe o braço, sem nada dizer. Ele começou a gritar o que dizia sempre: "eu sou um menino pequenino! Eu não sei nada!" Olhava-me com desconfiança, enquanto a minha avó o arrastava pela serra abaixo, eu com a bicicleta pelo braço. Até que a minha avó lhe disse "Então não vês. É a fatinha, da Elce". E ele olhou para mim. "Passarinho..."
Sempre esta rotina, e ela nunca esmoreceu, nunca se queixou, nunca nos deixou ouvir nenhuma palavra de raiva contra a doença mental do meu avó. Contra o seu destino ingrato, há anos a cuidar de um homem que a condenou a cuidar de seis filhos, que deixaram de estudar quando os sonhos se adivinhavam e começaram a trabalhar aos 12 anos, porque a mãe não tinha dinheiro. Na aldeia, o povo, com pena do sofrimento daquela mulher, que nunca se tinha conhecido igual, ditava: "ele doente ha tanto tempo, mas ela ainda morre primeiro e ele fica desamparado..." Agoirentos. Estúpidos. Odeio-os. Foi mesmo assim. Ela nunca cuidou de si, porque só cuidava dele. Não tinha tempo para ela. Tantos sinais de doença, tanto tempo de anemia, e ela recusava-se a sair da aldeia, recusava-se a deixá-lo sozinho. "Quem cuida dele?" "Alguém cuidará, avó" "Ele não come. Não deixa que ninguem lhe toque" "Agora é tempo de cuidar de si, ele está bem" "Não estará, quando eu não estiver..." E tinha razão.
Ele também o sabia. Não era tão doente nem tão perdido como se fazia. Um dia, antes de irmos embora de Aldeia Velha, fomos todos despedir-nos dele ao quarto, à vez. Voltavam de braços encolhidos - ele nunca dizia nada, nao cumprimentava, nada. "Xau, avó. Beijinhos. Voltamos no Natal...", e fiz-lhe uma festa na cara, mesmo sabendo que ele não gostava e que podia levantar a mão contra mim. De repente, olhou-me, apertou-me o braço e disse-me, de olhos muito abertos "Não vás, que a tua avó está doente. Não vás. Fica a cuidar dela". E eu tremi, ele nunca me tinha falado assim. Ele nunca falava. A ninguem. E disse-lhe, nervosa, no alto dos meus 10 anos. "Mas a escola..." Porque eu nao sabia que a minha avó estava doente. Ninguem sabia. Só ela, em segredo. "Sim, vai para a escola. O teu lugar ao pé dos teus pais. Vai, vai, vai-te embora". Voltou a fitar o tecto da sua cama, perdido. Sai, nervosa, a chorar. Naquele dia,não consegui contar aquele episódio a ninguem. Guardei-o para mim, mas tive medo. A avó estava doente? Mas parecia tão bem...
Meses mais tarde, um cancro no estômago. A minha avó. O meu avô no lar, sem que lhe fosse explicado nada. "Ele não percebe" "Ainda lhe dá uma coisa" "Ele fica agressivo".
E confirmavam-se os ditos do povo. Ela faleceu. A vida castigou-a por ter sido demasiado boa. Anos a tratar de um homem alcoolico, esquizofrénico, agressivo, doente, louco. Anos depois de anos em que ele se passeava pela europa de bicicleta e ela cuidava de 6 filhos que ele lhe foi deixando quando voltava a portugal. A trabalhar no campo, de sol a sol. a pagar a fiado, sempre que à espera que ele mandasse dinheiro de frança.
Meses depois de ela ter morrido, ele morreu tambem. Como ela tinha ditado, nao sobrevivia sem ela. Nunca soube que ela tinha morrido, que ninguem quis que se lhe dissesse. "Ainda lhe dá uma coisa" Na verdade, era a raiva do que ele tinha feito à mãe deles, seis irmãos, unidos entre a raiva e o amor a um pai que nunca tinham conhecido. O amor que tinham visto nos olhos dela, por ele. Só o amor podia justificar uma vida assim, tão dedicada, tão perdida...
Tenho tantas saudades dela. De como me abraçava, de como se ria quando eu dizia parvoices na igreja, baixinho ("Se ele nasceu ha muitos anos, porque dizemos hoje que nasceu, e nao lhe cantamos os parabens?" - Era dia de natal), de como me mostrava às amigas na aldeia "É a fatinha, filha da minha Elce", com um enorme sorriso e orgulho nos lábios - eu era a filha, a neta, que demorou 10 anos a nascer.
Tenho saudades dela. E sempre que morre alguem, assim, injustamente, como morreu Antonio Feio, levado por aquela doença horrivel que aprendi a odiar como o meu unico e verdadeiro odio, doi-me a morte dela como no dia em que morreu...
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