Deus das pequenas coisas

As palavras faziam ricochete na água. Eu encostava o ouvido ao rio para escutar a sua música. As palavras a tocarem mansamente o tempo e a solidão. As palavras fundidas numa música que me afastava da rotina sem sabor de tantos dias. Que afinava o desafinado e monocórdico desenrolar das semanas em que nos afastamos da beleza do Deus das pequenas coisas e nos fechamos em copas. Na catadupa dos dias que nos afastam de nós mesmos. De quem fomos, de que alma temos. De que a janela pode ser aberta. Lá fora há outro tempo fora do tempo, outros mistérios fora dos nossos pequenos detalhes a que chamamos problemas. Outras árvores sempre mais imponentes que o nosso pequeno arbusto de jardim. Outras formas de dar sentido ao facto de amarmos ou, por outra, de nos fazerem entender o que é amar. De traçarmos os nossos verdadeiros gestos, como uma autobiografia. Porque não são os outros que nos devem escrever. Biografias em nada semelhantes umas com as outras sobre o que somos. Porque somos tudo isso. E a música continua a afagar o piano da alma. A gravidade não existe. Flutuei ao som da beleza da música sem que o chão me impedisse. E nada de grave havia nisso. Sem ser as notas graves que saíam da viola. E a música que tocava era para todos nós que nascemos com uma alma que nunca vimos. Que nunca cheirámos. Devia ralhar com a minha alma tantas vezes por estar sempre a querer sair do corpo. Bastará de facto de perguntar quem somos e apreciar este sol. Sim, está a chover mas há sol na beleza desta chuva que gentilmente toca as vidraças. E a música da chuva mistura-se com tantas recordações e não posso adormecer agora. Não posso. O mundo espera por mim. Apesar do tempo que perdi. Apesar dos erros que cometi. Apesar de eu ser eu. E continuar sem saber quem sou.

Comentários

Fátima disse…
isto fez-me ter saudades de ti, da faculdade e dos nossos dias eternos de amizade
Marta disse…
oh gosto de ti fatinhaaaa. Minha pequeninaaa=)=)
T. disse…
"E a música da chuva mistura-se com tantas recordações e não posso adormecer agora. Não posso. O mundo espera por mim. Apesar do tempo que perdi. Apesar dos erros que cometi. Apesar de eu ser eu. E continuar sem saber quem sou."

adorei este fim!
delusions disse…
"Devia ralhar com a minha alma tantas vezes por estar sempre a querer sair do corpo. Bastará de facto de perguntar quem somos e apreciar este sol. Sim, está a chover mas há sol na beleza desta chuva que gentilmente toca as vidraças. E a música da chuva mistura-se com tantas recordações e não posso adormecer agora. Não posso. O mundo espera por mim."


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Bjinho*
Sofia
scaramouche disse…
parabéns pelo blog.