Carrinha mágica
A carrinha dava muitos solavancos, era velha e estava empoeirada, fazia barulhos estranhos enquanto andava na estrada de terra batida. Eu não era uma condutora muito experiente mas estava decidida a chegar ao meu destino. Lá atrás pessoas com rostos familiares conversavam em voz alta, que nem o som do rádio abafava. Risos que me lembravam a infância, palavras que me reconfortavam mais que uma chávena de chá maçã-canela a escaldar. Pessoas que não eram simplesmente pessoas. Não daqueles vultos que passam por nós e nem sequer reparamos. Ouvia-se o barulho da palhinha quando sorviam as bebidas que tínhamos numa geladeira pequena. Havia chocolates e chupas devorados em cantorias e assobios. Eu não sabia assobiar e trauteava. Quer dizer, tu tentaste-me ensinar mas acho que ainda não consegui dominar a técnica e fico-me pelos turururu. Ainda tentei pesquisar num dicionário palavras muito difíceis para contornarem os caminhos deste texto. Mas a estrada naquele momento era em recta e o dicionário muito chato e aborrecido. Lá estava eu ao volante da "velhinha", cheia de blusões e com um gorro. Bem, os meus amigos lá do banco de trás iriam logo dizer "garruço" à bela moda da sua terra. A terra dos meus amigos tem um cheiro peculiar, tem casas de pedra e ruas de pedra. Só não tem corações de pedra. Na aldeia dos meus amigos há verde a perder de vista, há sonhos e perder de vista e há mundos para descobrir. Sinto-me sempre uma pirata na pequena aldeia dos meus pequenos companheiros. O perímetro não é muito grande, mas parece-me haver sempre muito para descobrir. Tudo me parece tão dimensionalmente diferente. Não, não me devia estar a distrair da condução em perplexas memórias e asserções. A estrada começou a ser mais estreita e os carros agora são muito poucos, todos se cumprimentam num aceno afável e cúmplice. Eu sei que não sou de lá. Só que nesse "lá" a tantos quilómetros da terrinha que me viu nascer sinto-me em casa. E nunca me sinto só. Porque lá tenho uma família que me espera, que me enlaça e me atropela de palavras e de sensações. Imaginei-me a correr perto daquela deliciosa ponte. Com a rapariga do cabelo indomável, o rapaz do sorriso bonito, a rapariga alta e bonita, a menina doce, a das piadas e frases disconexas e das bochechas, os rapazes que parecem os meninos perdidos que não querem crescer. Cada um deles ocupa na imensidão da minha alma um fragmento. De luz e de aconchego. Espero que a carrinha chegue lá com todos a são a salvo. E mais os outros que não referi, porque todos sem excepção moram na casinha de guloseimas do meu peito. Todos, sem excepção são a supresa do kinder surpresa que é a nossa vida.Mesmo que eu não goste de chocolates.E que não saiba conduzir assim tão bem.Esta carrinha é mágica, semelhante à daqueles desenhos animados que adorava em miúda. Eu ainda sou uma miúda. E todos eles meninos perdidos na terra do Peter Pan.Aquela aldeia não é mais que a terra do Peter Pan. Por um bocadinho não é preciso crescer, por alguns dias podemos ser índios de uma tribo só nossa. A tribo dos maiores. Só vocês sabem. E eu agora também sei.
Comentários
bem hajas por saberes ver como eu, abraçaste-me com este post.
ja falta pouco pra voltarmos la...