Máquina do tempo
A máquina do tempo arrancou devagarinho pelo vórtice do Mundo. Senti os ouvidos zumbir e a velocidade aumentou, acelerou a máquina que me levava de volta sítios e momentos onde nunca mais estarei. Eu era espectadora de mim mesma, regressando às primeiras faixas de um qualquer álbum da minha vida. Os meses recuaram e quando pus um pé fora da máquina do tempo, pouco parecia ter mudado.Vi-me de ténis, num dia de chuva amistosa, já que saltava para dentro das poças sem o mínimo sinal de preocupação. Embora as gotas se fundissem amorosamente com o soalho frio, um sol enternecido com a beleza do Mundo espreitava por entre as nuvens, em raios elegantes e sonhadores. Como sempre, eu cantava, até aí nada de novo. Nada de novo até tu chegares e irromperes na minha vida sem pedir licença. Como se no amor tivesse de haver licença. Como se o amor fosse uma aula em que pudéssemos pedir licença para sair. Não se sai nem se entra do amor. O amor entra e sai de nós. Espreita por entre as frestas que deixamos abertas, assim como acontecia com o sol que ludubriava as nuvens distraídas. Distraída sou eu, tropecei em ti numas escadas muito compridas, das quais julguei que nunca ia sair. Na máquina do tempo revi aquele dia em que tropeçámos nos lábios um do outro. A máquina do tempo avança e retrocede, estou zonza de tantos lugares que já visitei. Quem é aquela ali sozinha? Sou eu, outravez, de ténis e camisola quente de lã à espera do comboio. É outro inverno, outra faixa do álbum que recordo. Está tanto frio que posso escrever na janela. Escrevo o meu nome mas esqueci-me do teu. Resta o meu nome escrito na janela.De certeza que se o amor pudesse teria pedido licença para se retirar, para esquecer o nome que lhe gravaram a ferro e fogo. Esquecido do coração, da alma e da janela. Um comboio que avança nas entrelinhas da minha sofreguidão de viver. Que se compadece com o meu eu-bicho-carpinteiro ou o meu eu-desassossego-aperto no estômago. A máquina do tempo continua a serpentear pelas entranhas do tempo pelos momentos que nada me fará esquecer. Só que o teu nome eu já o esqueci, fugi de mim e de ti com os ténis molhados de chapinhar em poças. E só agora nesta máquina te recordo, ou recordo aquilo que construí sobre o teu nome e a tua pessoa, o que inventei para ti e os significados que dei ao dicionário do teu olhar. O teu olhar sem nome. O teu olhar sem abrigo que costumava descansar nos meus olhos. Volto ao dia de hoje, com o meu casaco quente em mais um dia-como-todos-os-outros. Um dia sem penas. Porque não há passaros. Um dia sem poças. Porque não há mais lágrimas.
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