Bolhas de sabão no turbilhão do coração
Nem a morfina apaziguaria o teu turbilhão interior. Refugias-te num tempo só teu, estilhaçado em segundos que parecem horas. Escondes-te num canto da tua cama, com as pernas dobradas e a cabeça sobre os joelhos. Lágrimas chovem na neblina dos teus pensamentos. Por companhia o pequeno urso de peluche que arrancaste às memórias da infância, sorris-lhe como se ele te pudesse sorrir de volta.Nada acontece. O urso permanece de peluche, de textura igual ao roupão do banho e aroma a sabonete de amora-morango. Ergue-se a noite pintada a aguarelas de negro e de estrelas apagadas por um bafo de tristeza. Desilude-se a inspiração, traçada em linhas tão tortas e em palavras tão banais. Néscias e inócuas palavras. Comovidas palavras. Saiem uma a uma de uma cítara desafinada. Perdida no labirinto da tua própria cama. Hoje não te resta esperar nada. Porque absolutamente nada ocorrerá. Está frio, tens as mãos geladas e aperta-las com a força que ainda não te abandonou. Hoje nada te aquecerá as mãos. Ninguém estará lá para fechar a torneira das tuas lágrimas. Nenhuma caneta fluorescente te desenhará estrelas. Falas sozinha esgrimindo contigo mesma, num diálogo entoado em voz aguda e emocionada. Perguntas sem resposta ou respostas sem pergunta.Não, não podes fugir de ti, de quem és. A porta é uma miragem, trancada a chave e cadeado e o ar asfixia-te. Queres fugir e ironicamente foste tu que fechaste a porta. Queres sair mas não sabes como. Queres amar mas não sabes como. Fechas os olhos l-e-n-t-a-m-e-n-t-e. E as sílabas do sono juntam-se, perfeitamente encaixadas, paradoxalmente aos teus pensamentos. Desarrumados na secretária, nas fotos dos álbuns. Desarrumados, sozinhos, mal interpretados e (des)acompanhados. Inventados, reinventados, escritos, apagados. O turbilhão do coração é cada vez mais acutilante e desabafas com a branquidão da parede enquanto as últimas sílabas do sono se fundem. Sonharás contigo mesma, num enorme jardim de éden, com um daqueles apetrechos tradicionais, a soprar alegremente bolhas de sabão pelo ar. Um céu muito muito azul e um sol-vermelho-bolha a sair do teu omnipotente sopro.Cai-te da mão o peluche. Mergulhaste nas sílabas. Já dormes.
Comentários
muito bom!
sem mais nada a dizer...