Olhos...


1+1 são 2. 2+2 são 4. Depois experimentei fechar os olhos por cinco segundos e agarrar-me ao corrimão da escada. Não parecia difícil, mesmo só conseguindo ver (ou não ver) uma floresta negra adensada, um vazio de luz, um poço de trevas. Dei um passo de cada vez, tacteando com o pé para saber quando devia ter cuidado ao mudar de degrau. A seguir abri os olhos, lá estava a escada, da mesma cor de há cinco segundos atrás. Cinzenta e meio suja de nódoas. Das crianças com os seus chocolates. Das senhoras idosas e das suas compras. Da vida a passar e a fundir-se nos degraus. 3+2 são 5. Tinham sido só cinco segundos. Matemática tão simples.
E quando a equação se complica? Quando a nuvem-negra nos persegue e nos domina num segundo interminável? Pensando no caso, tinha demorado o dobro do tempo a descer os degraus do que se tivesse os olhos bem abertos. Todos os meus fantasmas e os meus medos mergulhavam naquele fundo sem luz, na simbiose negra da cor sem cor. Agora vendo tudo à minha volta, basta correr e até saltar dois degraus de cada vez. 3+3 são 6. 6x5 são 30. E se a equação fosse para toda a vida? Se os olhos fossem como um relógio avariado? Daqueles que já não dão horas nem nada, mas que continuam lá por casa, à espera de um dia de S. Nunca em que os ponteiros voltarão a oscilar. E se assim fosse com os olhos? Se eles deixassem, de repente, de se ligar ao cérebro e de nos trazer a imagens? E ficassem ali, permanecessem ali mas não servissem para nada? Ficassem por não ter para onde ir, à espera de um não-dia em que voltassem a ligar-se ao mundo. Tanta estranheza.
Voltei a cerrar as pálpebras. Concentrei-me no cheiro das coisas. Um aroma adocicado, misturas de perfumes daqueles que por ali passam. Cheiro a mofo também, o prédio é antigo. Mas no fundo isto nada me diz, ou em nada me ajuda. Porque o olfacto é apenas um acompanhante do ver. Aperitivo antes do prato principal. Porque os olhos são o prato principal. A não ser naqueles enleios de amor em que quero tanto não ver e sentir mais, mais , muito mais, como se a visão me dispersasse, me atrapalhasse e me distraísse da verdade do tacto e do sentido.
Para quê as galerias de arte se ninguém as pudesse ver? Para quê o aprumo do reinado das gravatas, a consonância das cores, se não as pudéssemos distinguir? Para quê o medo e a vergonha da nudez?
Já tinha pensado nisto. E, no entanto, nunca tinha pensado nisto. Há tanta coisa que não saberia fazer. Ou não poderia fazer. Ou teria de aprender a fazer de outra forma. Nem sequer poderia reler este texto. As letras já não seriam precisas. As montras das lojas poderiam ser destruídas.
O olhar dos amantes, as suas expressões não poderiam ser vistas. Apenas as mãos, a tocar o rosto. Está a chover. E tu não tens olhos. Mas ouves a música da chuva. Talvez nunca a tenhas apreciado. Achas que se nós não víssemos conseguíriamos ter outro tempo? Parar com estas correrias desmedidas? E quem é mais cego?Quem vê ou quem não quer ver? Tantas vezes tens vontade que te arranquem os olhos. Porque a dor de ver a miséria deste mundo é forte demais. Porque a dor dos olhares de indiferença é perpétua.
Imagens.Imagens. Em catadupa e sem parar. O mundo não pára. O show continua. Às vezes os nossos olhos são mesmo relógios avariados. Neste caso desregulados. Vêm mas não vêm. Não vêm o que é preciso. Não sentem o que é preciso. 5+5 são 10.

(Texto inspirado no "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago)

Comentários

Fátima disse…
e se ficassemos sem olhos? robbie williams diz em "something beautiful": "love is getting too cinical, passion is only physical these days". e se nao tivessemos olhos, se nos apaixonassemos por vozes e palavras? seria melhor, pior?
Anónimo disse…
realmente ha coisas e determinadas situações que mais valia nao ter olhos para que nao as pudessemos ver...mas felizmente temos os olhos e ha que aproveitar para observar as coisas belas q a vida nos tras (e este texto é uma delas). mais uma vez parabens pois tens bue jeito.

Dum arraiano cheio de defeitos...