"A Rapariga no Comboio"

Saiu a correr do comboio, atropelando quem se lhe atravessasse à frente, de mala, livro e lancheira na mão, nos últimos segundos para sair da carruagem. Estava tão emersa naquela história que continuava confortavelmente sentada na sua cadeira a ler, quando chegou à estação em que devia sair e só saltou do assento quando o comboio deu os apitos finais, despertando-a de repente do livro que devorava. Aquele estava a ser um ano particularmente estranho e difícil e os seus melhores momentos eram aqueles, sozinha entre os seus livros, na suave cadência do comboio de todos os dias. Saiu para a rua ainda a pensar no capítulo que acabara de ler: uma mulher arrastava-se de viagem em viagem de comboio, bebendo latas de gin tónico em catadupa, adormecendo a dor de passar todos os dias pela casa que um dia fora sua e onde hoje vivia ainda o seu marido, mas com outra mulher e - era aí que a faca dessa dor espetava mais fundo -, a filha dos dois. Como a tristeza nos consegue arrastar para lugares de onde parece que ninguém nos conseguirá salvar. Ela nunca chegara a passar uma tarde deitada num banco de jardim, demasiado ébria para voltar para casa, como a protagonista do livro, mas, naquele mês e meio em que tentou parar o tempo, quantas manhãs não dormia até depois do meio-dia, envergonhando-se quando o relógio lhe mostrava as horas tardias a vermelho ou quando o namorado, tão compreensivo e querido como nunca, lhe ligava sem qualquer maldade na voz "então, dormiste bem? só acordaste agora?". Como lhe custara sair da cama naqueles dias, mesmo que fosse só para tratar das simples lides da casa e tratar de enviar alguns currículos, como tentar escrever com alma e emoção se sentia que as tinha perdido algures no caminho? Ou se - pior ainda - fosse como suspeitava, que nunca tinha tido assim tanto talento e que tudo não era mais do que a pena que sempre toda a gente sentia por uma rapariga baixinha, com ar de boneca e sorriso fácil que tudo fazia para agradar a tudo e todos?
Fomos tempos duros, momentos que a ajudaram a compreender porque para aquela mulher do livro e tantas outras, adormecer embalada por um desfile de copos e latas de álcool seria mais fácil do que forçar conversas com amigos e colegas de trabalho que pareciam ter a essência da vida compreendida desde o primeiro ao último dia: o que estudar, onde trabalhar, quando ter o primeiro filho e quando casar, que casa comprar e que seguro de vida escolher. Ela nunca tinha feito um seguro de viagem nem tinha o Cartão Europeu de Saúde, nem sabia qual o melhor banco para fazer um PPR... Ainda tinha tanto que descobrir e não sabia onde se tinha metido enquanto todos os seus amigos aparentemente tinham frequentado mil e uma aulas de "Como ser o Mais Esclarecido e Sucedido Adulto de 30 Anos".
Entre passadeiras e semáforos abria o livro e devorava mais algumas linhas da desgraça alheia que aquela escritora tão sabiamente sabia reproduzir (saberia ela também o que era chegar ao fundo do poço?), suspirando bem fundo enquanto pensava - talvez me tenha salvo a tempo. Talvez deva acreditar nesse talento que alguns dizem que tenho. Talvez deva acreditar em mim.

Comentários

Alexx M. disse…
Todos os que parecem muito decididos e sabedores, andam tão perdidos como ela. Andamos todos perdidos, a tentar fazer o melhor, em dias que nos sentimos donos da nossa vida e outros em que é ela que manda em nós e nos vira do avesso. Ela que acredite nela, sim, que se veja aos olhos dos outros, como a pessoa linda que é.

Quanto ao livro.... bem, quantas personagens neuróticas consegue uma autora inventar e pôr na mesma obra? Aparentemente, várias. :P
Fátima disse…
:) Obrigada minha querida. Sabes sempre o que dizer e agradeço-te por isso <3

Em relação ao livro, é exactamente como dizes, ahahaha. Há personagens que, de tão neuróticas e exageradas que são, que me dá vontade de saltar para a história e dar-lhes umas bofetadas. xD Mas, como em tudo na vida, elas terão tempo (ou não) para conseguir "virar a página" :)