Minha avó

Queria tanto que ainda estivesses aqui para me ouvir. Tenho saudades das noites em que a mãe me deixava ficar acordada até mais tarde, para ficar contigo na cozinha, a ajudar-te com os doces e bolos para alguma festa ou almoço do dia seguinte (em tua casa havia sempre alguém para vir almoçar ou jantar, e apesar de ser habitual, tu transformavas qualquer lanche numa festa). Eu ficava contigo de volta do arroz doce, das filhozes e das mílharas, como desculpa para te falar dos meus amigos da escola, das minhas dúvidas e problemas de menina de cinco ou dez anos - e tanta coisa que eu tinha para falar, meu Deus! Como é possível que em tão tenra idade se ache que a vida é difícil? Mas era mesmo assim. O recreio era uma fonte de questões e emoções que eu tinha de partilhar contigo, como se a minha vida dependesse disso. Enquanto despachavas doces e iguarias em barda, eu seguia-te como uma sombra, despejando histórias nas tuas costas, enquanto batias as claras em castelo, enquanto encavalitavas as sobremesas no frigorífico da sala, enquanto preparavas a mesa para o dia seguinte. Quando te sentavas, de rastos, no banquinho ao pé da lareira, a afastar as brasas para apagar o lume, como quem diz, temos que ir dormir, eu sentava-me à tua frente, como quem exige a tua atenção, e pedia-te só mais cinco minutos. Tu sorrias, cansada, aprendias o nome dos meus amigos e davas-me opiniões como se tivesses a minha idade, como se compreendesses exactamente o que eu estava a viver. O que eu mais gostava, avó, é que tu nunca me interrompias. Deixavas-me falar sempre, até ao fim, à minha maneira, sem te fartares ou começar com clichés de quem não está interessado na conversa e só se quer livrar o mais rapidamente possível para ir à sua vida e ainda pensar que é um bom amigo. Nunca te ouvi dizer tem calma, isso é normal, isso passa, não te preocupes com isso, ou outra expressão de algibeira que serve de ponto final parágrafo, agora deixa-me falar de mim. Às vezes quase adormecias para dentro do lume, enquanto eu falava como se não houvesse amanhã, e eu tinha de te segurar e acordar e pedir "só mais um bocadinho e já vamos dormir". E tu sorrias, eternamente paciente, no teu papel de segunda mãe, e contava-te toda a vida que se passava comigo enquanto tu não estavas. Enquanto vivias na tua casinha florida de aldeia, e eu na minha vivenda amarelada de cidade. Aquelas conversas eram, para mim, criança desassossegada na sua vida difícil de primária, uma terapia sem igual. Agora que a tua casinha de aldeia está vazia, e o lume para sempre apagado, percebo a falta que aquelas conversas me fazem. Sinto falta de quem me olhe nos olhos enquanto falo, que se preocupe e interesse genuinamente pelo que digo, sem desviar o olhar para o copo de cerveja nem procurar o telemóvel na mala. Tu sabias olhar para dentro de mim, acariciar-me a alma e deixar-me em paz. Sinto tanta falta de ter alguém como tu. Sinto falta de ti.

Comentários

Raquel Póvoas disse…
Percebo tão bem o que dizes... Tão bem. A nossa saudade deles sabe a Aldeia Velha... Temos recordações para sempre. Temos tanta sorte por termos no sangue a sabedoria, a valentia, amizade e amor de avós de Aldeia Velha.
Adoro ser de onde sou. Adoro sentir saudades desses tempos... Sabes porque? Porque podemos dizer que temos tempos num lugar mágico com pessoas que são especiais e diferentes desta gente da cidade.. Vão estar sempre connosco. Sempre.