Por aí à procura de ser

Parou o carro. Ainda anestesiada pela música, saiu e atordoada olhou em volta. Não sabia o que a tinha conduzido para tão longe. Parecia ter despertado de um sono maquinal de mudanças e rotundas, ou que alguém a tinha soprado devagarinho e girado as rodas do automóvel. Ela que conduzia com o zelo do primeiro abraçar do volante, as unhas pontiagudas fincadas nos estofos, o respirar nervoso como o arranque, os olhos muito abertos e a voz irritante do instrutor sibilando aos ouvidos. Não que não gostasse de conduzir, mas uma máquina em seu poder era tão ou mais assustadora que o seu fulgurante espírito, que não sabia controlar. Sentia que naquele adormecimento devia ter deixado alguma coisa para trás, devia ter perdido a mala. Mas não, enrolada em si jazia a bolsa castanha de borboletas silenciada por ela nas peripécias das suas odisseias. E o esconderijo de si não tinha esquecido nem abandonado nada. O telemóvel-sempre-mudo, o livro que esquecia nas adormecidas viagens de comboio, o filme de olhos intrigados do bibliotecário, perscrutando as pessoas pelos filmes que escolhiam, os bilhetes de semanas e semanas de metros e autocarros, sujos dos sacos de maçãs dos intervalos e do plástico dos caprichos de chocolate, e as chaves de casa brincando e tilintando entre o rebuliço como convém em dias de chuva e as matreiras não se deixam encontrar. O caderno de pontas reviradas de ideias manchadas de café, a escova das ondas de cabelo mais teimosas que ela, os óculos de sol e pó com que não sabia ser. Por sorte tinha tudo. Não estivesse entre portas e janelas, alguém repararia naquele olhar de pupila apagada. E Sintra? Que faria em pleno centro da vila misturada entre sotaques, flashes e castelos? Talvez quisesse entrar em estórias de filmes e intrigas romanceadas, perder-se no caminho das suas palavras, e esquecer-se que tinha tanto de igual para fazer, que nada sabia a azul.

“…I need to change the sounds that shape my life.” Robbie Williams, Please don’t die

Comentários

AR disse…
acabaste de me explicar porque é que ainda não tenho a carta!
=PP

***;)
delusions disse…
Eu adoro conduzir, "por aí á procura" de ser. Gostei muito do texto, e também gosto muito dessa música do Robbie Williams

Beijos*
Anónimo disse…
oh..gosteiiii tanto disto!
adoro a forma como escreves madrinha...e identifico-me sempre tt com as tuas palavras...tb eu já fui parar a sintra sem saber como ou porquê...
o alquimista disse…
Um dia desses convido-te para escreveres uma peça comigo...tens uma forma deliciosa de narrar as coisas...

Doce beijo
RiTA disse…
And if you die before I leave, what on Earth becomes of me? :***